Victor Requião

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quinta-feira, 29 de março de 2007

Contos interditos - Parte 16

O saber do despertar

De onde tudo poderia ser formado? Alguns falaram de uma tal solução cósmica que tomaria diversas formas, através das vibrações em que fosse posta em contato. Assim tudo tem sempre sido, onde coloca-se a mente ela tende a modelar a essência das coisas conforme vibra a elas. Seria tão simples se o bem comum pudesse ser completamente ciente de todos esses fatores que de várias meneiras intereferem e direcionam os acontecimentos e fatos que se vive no caminhar diário. Desde os aromas aos sorrisos, tudo isso tem o seu lado completamente profundo e misterioso nas entre-linhas, mas poucos realmente se deixam sentir por tal atitude. O seu mistério, qual não representa intimamente mistério algum, é a gota de água que se espalha em círculos concêntricos quando vindos dos céus e caem no lago quieto dos dias a serem vividos.

O sol, quando o dia começa a raiar, parece sugar a cada momento o tempo que segue. Levando consigo todas as experiências vividas sob sua luz e a mocidade do futuro, fazendo tudo se resguardar de forma eternamente atemporal. Através de conceitos humanos o tempo foi definido, mas de nada serve além de qualquer sensação permitida aos olhos do sol e principalmente por trás dele.

As mãos quando postas de forma a tapar levemento os ouvidos criam uma sonoridade diferente, é como se pudesse tocar todas as formas e assim percebê-las de outro ângulo. Não de cima ou de baixo, tampouco lados. Mas de dentro para fora, como a alma que tenta aflorar do corpo de forma fina e passageira quando nos repousamos na inconsciência. Ou ainda quando criamos completo desapego e nos despojamos à simplicidade.

A tentativa de acreditar em tudo que foi dito, sentido e tido como grande direção por onde as coisas no fundo iriam seguir com alegria, é realmente não simples de se sentir. Quando se cresce e se começa a ter as dúvidas que por mais que haja preparo para elas sabendo que um dia chegarão, recebe-se a grande força contra todas as suas e assim tudo arrefece. Nesse momento todas as palavras ditas como profecias vindas de seres mais altos, que durante a infância se mostravam caridosos, se esvaem como pó no meio do deserto. A sensação de nostagia de lugar nenhum simplesmente é perfeita, pois de tudo se sobressai e a todos procura não olhar. E quando a preparação mostra-se quase que eficaz, depois de tudo intimamente acreditado com certa desconfiança, sente-se como um ser qualquer dentre os diversos, factível de ser completamente renegado por quase todos onde a vista pode alcançar. A dormência conduz ao esquecimento rápido dos sentidos, levando à misericórdia do último momento de todas as incertezas.

Sentir a vida que segue, serenamente profunda a sensação a tomar-se como irmão dela de forma tardia. Assim há a unidade entre as criaturas, cada uma com sensações à sua maneira. Através da não compreensão dessas palavras por alguem que as houve, este emudece e mostra-se não vibrar na sintonia que conduz à verdade intocada diante de todos os fracassos mentirosos.


Hesse caminhava pela rua tentando olhar para as coisas de forma como se algo escondido pudesse ser percebido, mas tudo parecia estranhamento natural. Caminhava, queria que seus passos durassem mil noites e que tudo aquilo pudesse ser aveludado a cada pegada deixada no chão da Terra. Conduza, ser irmão, o seu caminho longo na calma forma como se deita, e assim cada vez mais translúcida fica a sua liberdade.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Contos interditos - Parte 15

Segundo despertar

Chegara em casa tarde, tudo parecia repousar num sono esplêndido como se a natureza ao seu redor fosse sempre entregue ao silêncio e à escuridão. Assim podia ouvir a sua respiração enquanto entrava pela porta e seguia pelo corredor, seus passos pareciam firmes, mas no fundo a firmeza estava longe de sua mente. Navegar pelo torpor de um momento como aquele era a única opção que seu corpo desejava, ficar sem movimentos e somente perceber as impressões dos sentidos de forma estática e doce. Essa leveza de um cansaço estonteante a guiava ao descrédito de tudo, realmente tudo que no fundo sabia que estava a acontecer enquanto ela estava ali largada e inerte. Estavam muitas pessoas a dormir, outras a ler ou simplesmente a olhar para céu. Talvez em direção à claridade da lua que ela sabia que estava lá no alto, e somente o seu reflexo pelos vidros da janela meio aberta conseguia ver de onde estava.

Fitou com os olhos o braço direito e ficou observando o contorno enevoado ao redor dele, ainda mais realçado pela penumbra que lá permanecia. Naquele momento não desejava absolutamente nada, nada realmente existia ali ou além, para que pudesse ser dada um atenção envolvida de desejo e vontade. Entre davaneios dementes, pensava em todo significado da existência que estava imersa, desde as flores até as pessoas que seguiam suas visas e obtiam um certo sucesso com tudo aquilo. Ela sabia que o sucesso na verdade era uma própria invenção humana, como um degrau por onde aqueles que passaram primeiro disseram que ali tudo poderia ser visto de forma diferente. Como se de lá, do degrau mais alto ou baixo do sucesso, toda a representação da vida em sociedade fosse digna de satisfação e alegria. Isso tudo era belo e perfeitamente viável para ela, apesar de que de nada adiantava ficar cogitando sobre as possibilidades de encontrar os ditos sinais que a levariam às diversas escadarias onde se podia ver de cima. Procurava não pensar nisso, afastando sem muito êxito os pensamentos que faziam sempre com que se lembrasse de sempre ter a esperança ao seu favor. Sentia que prender-se aquilo a angustiaria ainda mais, deixando-a cega quando novas direções se mostrassem à sua frente

Tantas cabeças perto dela a deixavam intimamente agoniada, tantos como ela tentando seguir. Mas algo sabia que existia de diferente entre os demais e ela, os sinais se manifestavam em lembranças e acasos que traziam um significado inerente a todo aquele momento. Se ao seu favor ou não, não sabia. Preferiu tentar deixar que a força de manifestar o seu desejo de mudar fosse maior que as dores que tentavam momentaneamente derrubar-lhe as forças que usava de forma nova como meio de lidar com mais estabilidade frente ao que se manifestava diante seus olhos. Era até mesmo assustador o olhar de todos eles, tantos medos por ali a pairar sob suas cabeças. Eram iguais, porém com tons que variavam do cinismo à mocidade bela de algumas outras jovens como ela, com a diferença que os sorrisos eram sempre pouco percebidos entre eles.

Lá ficou até adormecer em seu quarto, entregue com completo desprendimento ao cansaço que lhe retirava do corpo e a deixava leve por todo o ambiente. Dá para perceber que não estava consciente, mas no seu íntimo sabia que de forma natural havia a sensação de que o pulsar dos sinais que percebera, não a faria ser como antes, nem mesmo que tentasse. Tudo já havia se iniciado e era questão de tempo para que Vick pudesse começar a sentir a realização das atividades que dentro de si a impulsionavam em direção às novidades de subir novos degrais. Durante todo o caminhar, sabia que poderia sorrir.

terça-feira, 20 de março de 2007

Contos interditos - Parte 14

Primeiro despertar

Dhrei tivera um sonho lúcido como algo realmente vivido, sonhara com uma casinha feita de pedra onde nos fundos havia um grande lago de águas plácidas e frescas. Ainda posso sentir a brisa que de lá soprava, era de um contentamento que levaria aquele que tivesse um gosto para as pequenas coisas à estados inimagináveis. A casinha era singela, sem muitos adornos que a fizessem destoar do clima magestoso que a paisagem inspirava, suas paredes de pedra poderia ser confundidas quando vistas de longe com a protuberância da montanha, que continha o lago e ela também, que extendia-se pelo vale. Havia uma árvore de tamanho médio ao lado da pequena casa, era engraçado como as folhas que dela caíam no outono deixava o seu telhado repleto de tons multicores trazendo a sensação de que ela existia num universo puro e intocado pelas superficialidades dos homens.

Sentia-se dentro da casa, ele e Tomas, vestidos de forma simples como verdadeiros homens cultivadores da vida campestre quando de forma súbida a porta se abriu. Entrava Hesse com o rosto um pouco cansado, porém emitindo grande luz. Sua barba estava por fazer, dando a impressão que havia se aventurado por muitos lugares e não tivera tempo para reparar pequenos detalhes da sua aparência. Lá ele entrou, com um sorriso de grande mocidade nos lábios e assim fitou os dois rapazes de uma forma extremamente cortez, dando-me a impressão de querer envolvê-los nas sensações que fluiam-lhe pelo corpo. Trazia na mão um galho de árvore, um tanto grosso, que provavelmente lhe servira de cajado durante suas andanças.

Tomas sorriu em únissono e assim sentiram uma certa alegria por estarem os três em momentos como aquele. Sabia que Hesse havia vislumbrado sinais da própria natureza e se identificara completamente com eles. Como de fato é necessário quando não se acostuma facilmente com as coisas e arriscar-se mais, procurando sempre seguir os caminhos que tais sinais indicam.


Dhrei acordou sentindo um cansaço tão profundo que o deixou inerte durante vários minutos, sentia conscientemente as sensações que vinham do seu corpo e de olhos fechados permanecia. Olhando para ele poderia ter a impressão que estava novamente a dormir, mas não estava. Dormente deixou que tudo aquilo não tivesse explicação alguma, não necessitava de que mais nada lhe viesse com definições, ainda mais num momento como aquele depois de tudo que vivera em seu sonho. Viu que existiam caminhos a seguir e que não podia ficar parado, ou acostumado com apenas um deles. Aquilo tudo o deixou malancólico, nada muito diferente das forças que o tomam sempre que está num momento de transição entre direções aparemente opostas. Encontrava-se na região nebulosa entre os caminhos que estava disposto a seguir, a incerteza dos passos e a forma como os sinais iriam guiá-lo no fundo faziam sentir-se um pouco leve por ser ele mesmo e poder de alguma maneira ter acessos a essas oportunidades da vida. Que os sinais da natureza continuem a vir e a rodopiarem todas as suas formas e direções! Que tudo se transforme, fragmentando-se em mil pedaços desnudos de início após um novo fim...

quinta-feira, 15 de março de 2007

Contos interditos - Parte 13

Sincronicidade

Tudo em todos os universos emana a sua própria consciência, repleta de vivências e sensações fixadas pelo tempo de tanta existência. Assim são o efeito que elas causam, deixando centelhas de mudança em tudo que tocam quando se elevam aos céus, rodopiando numa dança espiral que é belo de se ver. Por mais que sintamos que os momentos podem ter passado ou simplesmente pareçam como sonhos que tivemos numa noite que não se pode lembrar, as vivências deixam marcas na pele que sempre terá a mesma forma apesar dos efeitos do tempo. Por isso é preciso despir-se e deitar na grama, deixar que a humidade da terna invada o corpo e o abençoe com o que de mais sagrado possa existir, o pulsar da respiração do mundo. As árvores são as melhores amigas que podemos em silêncio conversar, tranquilas são suas almas que nos permitem vê-las em forma humana, somente para que assim nos sintamos mais à vontade para olhar-lhes nos olhos. Que elas sempre concedam, sem tomar qualquer forma, tal despredimento. Que sejam como são, árvores e caminhos honestos por onde a vida pode ir e vir.

Olhando para Tomas tenho a impressão de vê-lo como um arvorezinha da montanha, do tipo que crescem os musgos ao pés de suas raizes fazendo-lhes companhia. Assim é bela a sensação de ser tocado intimamente por tais seres esverdeados que não se intimidam pelo tamanho, mas se deixam contemplar pela vontade de ali estar. Existem outros tipos de pequenas árvores que preferem arriscar-se à certas alturas, já existem outras que preferem servir de abrigo permitindo que algo possa conviver ao seu redor e se sentir cuidado. Ainda existem os tipos mais simples de todos, os que se tornam sábios conselheiros em momentos de inquietação. Sempre havendo o convite ao sossego e aroma que exala de seu corpo quando gentilmente permitem que arranhemos-lhe o tronco e deixemos que sua fragrância nos purifique as narinas.


Sentia o som lhe invadir por completo, como se aquilo o conduzisse à um entendimento mórbido de toda a realidade que via. Sonolento ficava na medida que podia tocar, deixando o som que levemente suas mãos faziam num pequeno tambor, preenchesse completamente o local. Isso o arrebatava para dentro de si fazendo contemplar todo a realidade que ainda não era possível perceber quando estava no seu natural estado de desperto. Realmente era uma sensação estranha, saber que existem forças atuando nos bastidores de sua própria consciência e ter que por um momento sair de si mesmo para que elas docemente lhes mostrem suas formas! Hesse sabia e procurava através das batidas alucinógenas do seu tambor olhar de frente para tudo aquilo que estava por trás de seus pensamentos mais secretos. Esses são realmente os momentos de intimidade que poucas pessoas sabem quem existem, são os mais reais e repletos de vida. A mesma vida que podemos ver e tocar, porém numa forma desnuda e sem coberturas criadas por conceitos ou análises impostos por nós mesmos. Tudo existe, mas para ser mostrado precisa-se adentrar os portais internos, de forma limpa como alguém que andando descanço sente o relevo onde pisa sem se incomodar com a leve dor que algumas pedrinhas possam lhe fazer nos pés.

Queria vê-la, banhar-se completamente no perfume que emanava naturalmente da sua pele. Parecia que tudo simplesmente tornara-se calmo e morno, mas sempre há um momento de temporal após uma certa calmaria nos sentidos. Era possível ainda poder lembrar do seu sorriso como antes? Apesar de todas as andanças não muito fáceis de se perceber sabia que aquilo que o envolvia nesse momento o impulsionava a certas atitudes despojadas. Isso era contraditório muitas vezes com o que pensavava a pouco tempo atrás, simplesmente deixar-se compartilhar por algo incerto dentro de si. Queria envolver-lhe novamente nos seus mistérios e fazer com que ela nem sentisse quando adentrasse a cortina de sensações que separava o mundo silencioso e perfumado do seu divã das sensações cegas e amorfas que vagam sem direção do lado de fora da porta. O envolvimento o fazia sentir pontadas no estômago que já aprendera a identificar desde a infância quando sentia que algo no mundo íntimo de sua consciência metafísica se manifestava. Aprendera a conviver com isso, apesar de que muitas vezes o queimavam da mesma forma que o gelo queima a pele de quem o subestima.

Tentava falar com ela em pensamento, como se isso pudesse ser controlado e realmente vivido por ele. Não sabia onde exatamente agora ela estava, apesar de poder de longe ainda sentir a sua forma pequena. Tudo estava solto a girar frente aos olhos de Shiva e isso tinha algo de mágico e hipnótico, queria beber de tal elixir deixando que a lucidez dos que verdadeiramente se permitiram mergulhar nos aromas mais íntimos da existência humana pudesse ser sempre preservada no aconchego de seus braços. Sendo que lá poderia ouvir a voz falar-lhe sobre tudo o que viveu, de errado e certo, mas sempre deixando calmamente claro o quanto relativo podem ser os múltiplos significados de certas palavras. E a mesma voz dizia, como num eco vindo de dentro de sua cabeça, para que deixasse tudo sair. Que deixasse que o medo pudesse ser expelido com total naturalidade, como o organismo procura se livrar de algo extranho quando sente que isso o conduzirá cedo ou tarde ao seu não perfeito estado de equilíbrio.

Lídia não contara verdadeiramente a ele de onde tudo aquilo de dento dela vinha realmente. Sabia que precisava ser observada com atenção, ser notada com os sentidos que as pessoas não sabem usar. Aquilo era nobre para ela, poder se fazer compreendida em gestos e sensações sem que sejam necessárias muitas palavras para expressar a virtude que sabia hav nela. Lembrara-se do momento que o viu encostado numa árvore naquela praça não muito visitada, enquanto procurava um lugar sosegado para meditar um pouco. Aquilo aconteceu pelas forças certas do acaso que sempre direcionavam os sinais aparentemente soltos em uma grande manifestação da sincronia entre almas. Sentou perto e não quis se fazer notar, aquilo era nítido demais para que alguma atitude além do sentir pudesse ser usada. Realmente não era necessário, todas as árvores eram suas companheiras e sentia-se protegida pelo fato de que momentos como aquele pudessem tomar forma no seio delas. Algo o tocou, podia notar isso quando olhou para o lado e viu o olhos castanhos esverdeados olharem profundamente por entre os seus, como se observassem algo nunca antes visto. Não conseguia falar, era uma vontade surpreendente de rir. Poder rir como garotinha e não ter que se preocupar com nada, pois mesmo que houvesse alguém nada poderia ser impedido e nem meramente percebido. Naquele mesmo início de noite entregara a ele sua vida secreta, o toque da manifestação verdadeira de sua vontade. Repleta de tons e aromas como aqueles vindo das flores que se deixam às mãos do montanhês sincero serem despidas suas pétalas enquanto o envolvem em sua essência infantil.

Em seu reino via o tom calado da natureza figurada naquele móvel verde, onde repousara com total tranquilidade como se seu corpo tivesse o peso de uma montanha. Ficou a falar-lhe em sentidos, mostrando as formas que vinham dela quando ele encostava o nariz em seus cabelos deixando-se sentir pela fragrância que tocava o ar à cada palavra por ela pronunciada. Todo o néctar de seu incenso e toda a chama de sua luz a conduzia em um sono que mais parecia uma droga vinda dos lugares distantes, onde os deuses de todos os povos se conciliam em uma única força vinda do eclípse oculto entre o Sol e a Lua.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Contos interditos - Parte 12

Unidade

Apesar dos caminhos novos que as pessoas tem levado no decorrer dos anos de modernidade, sentimentos antigos ainda continuam a permear o ar que elas respiram. Nos bastidores do cotidiano, universos paralelos dentro de todas as vidas tomam forma e liberam suas forças. É a verdade adjacente nas energias que os sentidos percebem debilmente, sendo decodificados os sinais vindos dessas sensações tão naturais quanto o próprio vento. As chamas que sobem aos céus refletem todo esse lado que poucos conhecem, daqueles que lidam com a terra em essência deixando-se levar pelas brincadeiras do fogo. Rodeando as pedras que tomam formas próprias entoam certas melodias ao vento que as levam e as mantem em local divino. Sentem a presença da força mãe que os guia em completo desprendimento dos erros por eles cometidos, sabendo que o acerto será a transmutação desses erros através do calor que brota de si mesma.

Na visão do pensamento consigo ver tudo aquilo, e assim me entregar a todas as fagulhas que ao fogo dançam sob a luz da lua e somente naquele universo brilham, apesar de a grande maioria das pessoas só lhes perceber a forma. Assim pode-se ver do alto a mistura entre esses dois grandes universos humanos, a divindade daquele que permeia todos os atos de vontade e o outro que colhe os seus efeitos sem perceber. Os seres que pertencem ao primeiro são os responsáveis pela beleza de todas as coisas, pois é através deles que a roda das mudanças pode continuar o seu movimento incessante quando esses se unem e põem suas próprias sensações como força para que ela possa girar. O outro universo colhe os seus frutos, com um leve contentamento fluem as influências exaladas de tudo o que foi sentido e criado em completo êxtase no primeiro. Dessa forma são todos aqueles que caminham e não sentem os seus pés tocarem o chão, pois simplesmente percebem o passo e não a caminhada como a própria inspiração que os faz continuarem a seguir.

O sinal já se refletia como farol longínquo, de lugares distantes podem quase se misturar às estrelas de tom amarelado assim tornando notada a sintonia que entre eles já havia sido revivida por algo que estava além de todos os deuses. Isso tinha um caráter impossível de observar, mesmo se estando ciente que não é necessário qualquer entendimento para lidar com tudo aquilo. Apenas a vontade de entregar-se por completo a tal abstração importava e a consciência de ser alvo de certos efeitos, nem sempre tão fáceis de lidar, precisava estar desperta. Essa é a união pelo fogo, o poder metafísico que em um único momento pode juntar duas ou mais almas numa única fagulha e conduzí-la dentro de uma redoma de vidro morno, para que se possa assim maturar e ganhar o sabor perfeito para que ao sair da redoma purifique por completo as diversidades até então unidas numa só.

Era vital seguir o caminho se permitindo encarar os seus desvios, principalmente quando se poderia ver aquela pequena passagem que sempre convida para que se siga por ela. Tudo precisava ser completado mesmo que na sua extrema brevidade, a morte é diária e o nascimento se dá a cada instante que se levanta após um novo despertar. O inacabado maltrata aqueles que possuem o Sinal da Lua, nada mais os incomoda que a sensação de poderem fazer parte de algo que toma caminhos inpensados e os conduz simplesmente à contemplação dos sentidos. É tão forte tal sentimento que necessitam se isolar, ficarem silenciosos sem que o mundo os perceba durante esse tempo. Preferem ir em direção aos rochedos onde podem deitar, misturarem-se à terra não vendo a figura que seus corpos possuem, nem tampouco sentir o aroma que lhe possuem a pele despida. Ficarem lá e se banharem nus na chuva de tal intimidade, onde podem beber da mesma água que cai sem ao menos pergurarem-se o porquê de tudo aquilo. Sim, eles precisam disso como o ar que respiram, assim como precisam sentir novamente o que os conduz aos amores ininterruptos. Como num estado de destruição e contínua recriação dos universos em seu interior, tornam-se singulares e diferentes daqueles que conseguem se isolar na multidão e apenas indiretamente receberem as forças do universo criador.

Subjulgar a razão pelos encantos verdadeios de Eros, que arranca as limitações da existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz tudo experimentar a mais alta sensação de desprendimento. Assim sente o camponês que avista uma bela montanha de longe e sente-se encantado pelas belezas naturais que dela emana, nesse momento ele é Agape e permite-se completamente envolver pelo sentimento de unidade com tudo aquilo à sua frente. Aí percebe-se como rei que não precisa de reinado, pois Eros o mantém vivo e alerta para o feminino e o masculino daquela visão maior que é clara quando ele adentra sem receios a atmosfera que a cerca.


Lídia ouvia música completamente despida sobre a cama, os olhos semi cerrados a faziam sentir como se entrasse na melodia que inundava o seu quarto num tom delicadamente místico. Suas mãos abertas apenas sentiam um pouco a pulsação do sangue a correr pelo seu corpo, oxigenando todas as partes numa tentativa incessante de sempre a manter presente no mundo repleto de sensações onde se permitia estar.


Vick por sua vez banhava-se no perfume de suas violetas, as mãos sujas de terra a faziam tão bem que sentia alegria ao poder olhar a forma engraçada que as pedrinhas tinham quando observadas com atenção de perto.


Por mais que tentasse, Hesse não conseguia dar forma a tudo que vinha ao seu pensamento. Então deixou a pintura no canto da janela para que secasse sem que o sol a visse. Enquanto lava as mãos sente-se tranquilo por mais uma vez a força se manifestar...


Dhrei está a cochilar em baixo da árvore nos fundos de sua casa, lá está deitado agora e alguns pássaros voam baixo conduzidos pela brisa do outono que já se faz presente.


Saboreava geléia de canela com goles de vinho enquanto lia uns versos que havia recebido a tempos atrás. Neles haviam rimas leves, que nem se faziam perceber por quem os escrevia. Eram de um tom de intimidade poética que pouco havia visto em outros versos, assim Tomas sentia-se consigo mesmo enquanto lia e saboreava o leve amor que o vinho fazia ao sorver o gosto de canela ainda presente em sua boca.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Contos interditos - Parte 11

Realidade

Tomas não sabia sobre ela, apenas deixou-se seduzir pela sua forma simples e pequena apesar de ter receios íntimos quanto a isso. A linguagem que compartilhavam era somente deles, nada muito claro quando se tenta entender com os sentidos que se tornam confusos ao se procurar auxílio neles. Assim me sentia muitas vezes quando tentava observar, até perceber que o meu sentir tinha que se tornar rebuscado e incompreendido pela pessoas que não se mesclavam a tal sensação.

Um mistura alucinógena o vinha à cabeça, queria sentir suas energias fluindo numa só como uma grande flor de lótus! E tudo aquilo era como tinha de ser, onde sentia o pulsar constante dos sorrisos que lhe contemplavam com profundos olhares passageiros. De muito esquecera, mas não da grama verde onde descalso deixava que massageassem os pés enquanto a tinha perto do corpo aos olhós da árvore. Queria o toque incompreendido e aveludado que somente poderia vir dela! Não que isso o fizesse perder o valor por todas as outras pessoas, apenas dela havia algo que somente a ela pertencia. Como poderia negar-se a tal valor, se era tão sincera em sua natureza? Agora pude ver algo que encerrava carta e que não pude perceber quando Hesse a envolveu, juntamente com as outras, no manto protetor da sua caixa escura:

"...esse é e será o nosso maior tesouro, vindo de lugares tão altos que somente o que sentimos pode alcansar. Assim perceba que tudo está ligado, como fio fino que nos une desde tempos sem ínicio sempre a nos envolver em seu manto de sensações multicores. Deixe-se consumir pelas chamas de seu próprio ser e purificados sejamos pelo fogo daqueles que compartilham o mesmo sinal."

Sabia que precisava ir ao seu encontro, mesmo ainda que a tarde estivesse clara e a lumiosidade característica o incomodasse um pouco. Saiu do seu canto carregando a carta, que aberta sobre o divã durante a noite ganhara o leve aroma de benjoim da fumaça que cessava.


Hesse decidiu dedicar-se um pouco às suas aquarelas, procurou sair um pouco do clima urbano que o rodeava, era difícil de suportar toda a contemplação que estava imerso no meio de tantas coisas que tentavam roubar-lhe a atenção. Procurou ir aos rochedos não muito distantes onde poderia sujar as mãos nas cores que mais gostava, enquanto deixava tomar formas soltas daquilo que o permeava sem querer. Não tinha em mente o momento preciso de quando tudo aquilo que foi mostrado através dele iria acontecer, respirou fundo e ainda com pingos de tinta seca nas mãos retirou o papel que levara consigo no bolso da camisa de mangas compridas dobradas na altura dos cotovelos. Releu parado um mesmo trecho que prendeu a sua atenção, aquilo deixou-me curioso e acabou por chamar a minha em sua direção:

"Não precisamos do tempo, de nada valeu tudo o que fizemos através de datas e acontecimentos marcados. Então, por que deixaríamos que isso nos levasse aonde não queremos? Contemplaremos nossos rostos e assim reconheceremos o fogo que serpenteia nos conduzindo à sensações muitas vezes incompreendidas, mas que são reais dentro de nossa própria existência. Perceba que o sinal sempre se manifestará, nas pessoas como nós e no lugar onde nos uniremos no solstício próximo."

Após algumas horas de forte observação verificou que a pintura em seu colo ganhara um tom diferente do que imaginava pintar, era a figura de um rapaz cujo rosto não era possível distinguir. O rapaz estava de costas no alto dos rochedos e observava absorto o horizonte, o vento soprava levantando-lhe o casaco que parecia dançar uma música não audível aos ouvidos. Ao seu lado na grama amarelada havia uma pedra de tom luminoso e violeta que brilhava docemente ao sol que se punha frente à figura do rapaz. Dhrei, pensou Hesse por um segundo sem ter dúvidas. Era o sinal novamente que reunia secretamente os merecedores da tal chama, daqueles que haviam sido os mesmos em roupagens novas carregando o fardo de serem inconstantes.


Voltando já de noite em passos que o conduziam aos degraus que iam em direção à porta, tateara a chave sempre escondida debaixo de uma pedra firme e pesada. Ao lado da chave havia um papel húmido e amassado que reluzia um prateado apagado pela luz fraca da entrada. Jogara-se num só golpe na poltrona da sala e lia as palavras que mais pareciam vindas de um pergaminho antigo, talvez escrito por algum artista que sentindo a verdade o manchara de rajados de tinta fraca e colorida. Dhrei ficou calado simplesmente olhando para o vazio, nada consolava o seu pensamento que em ponto algum conseguia fixar. Assim ficou até romper o silêncio com um breve sussurro que não consegui entender, encostou mais ainda as costas na poltrona de forma que seus olhos pudessem brincar com as linhas coloridas formadas pela luz que transpassava o pequeno lustre composto por pedaços de vidro que havia comprado de um mercador indiano.

Eu poderia sentir Tomas muito longe de lá, consegui quase ouvir o balançar da aste de metal a tocar a janela onde ela dormia fazendo um rangir leve e agudo. Era belíssima a imagem de vê-la deitada com os cabelos a tomar a outra parte da cama como se pudesse completa-la por inteiro. O ruído não a acordara de primeiro, mas a fez entrar num novo estado do seu sonho, onde podia ver fogo e o som de galhos de árvores balançando ao vento trazendo uma sensação de mocidade e frescor. À cada toque que a planta da aste fazia na janela, o seu sono se esvaia e a sua consciência acabava por trazê-la de volta aos sabores da realidade. Tomas já estava dando passos em uma quase melancolia quando pode ver o vulto da presença feminina a abrir a janela e olhar atenta para o jardim, sentiu o rosto dela a cruzar a escuridão e ir de encontro aos seus olhos. Ficaram sentados, ela de costas para ele enquanto os seus braços a envolviam por trás. A árvore onde ele estava encostado servia de apoio onde podia repousar a cabeça e inundar-se no perfume que vinha dos cabelos dela. Assim o tempo passou e o clima frio os levou ao quarto dela.

Ao acordar, Vick não sabia onde estava. Sentia-se enebriada pelo sono que ainda teimava em abandonar o seu corpo pequeno. Virava levemente de um lado para o outro de sua cama larga onde sentia-se completamente à vontade para entregar-se por completo à sua preguiça. Porém sentiu algo entre os seus cabelos a arranhar-lhe o rosto, tateou ainda lerda procurando aliviar o incômodo quando segurou o papel de arroz que Tomas a deixara. Os seus cabelos, como ele pensou enquanto deixava o quarto, serviriam de bálsamo por onde os seus desejos sinceros poderiam se banhar.

domingo, 4 de março de 2007

Contos interditos - Parte 10

Veludo

Existiam alguns zumbidos entre o tocar dos copos naquela tarde clara, as pessoas conversavam de forma mansa e era impossível tentar compreender alguma frase por inteiro. A aproximidade entre elas fazia com que falassem baixo e se deixassem entender de uma forma que não são necessárias muitas palavras. Lídia sabia que momentos como esses de alguma forma faziam com que o cotidiano sempre ganhasse um caráter diferente e novo. A força de dentro que sentia sempre querer chamar-lhe a atenção por oras se fazia notar, ainda mais quando conduzia o seu olhar de forma quase que automática para locais ou pessoas que ela não conseguia ao certo distinguir quem eram. E assim quando foi carregar uns copos que estavam largados num canto do local onde se encontrava, percebeu aquilo novamente tentando lhe dizer algo, tentando conduzir a sua atenção para algum ponto que até o momento não sabia qual era. Percebera de súbido algo branco por trás dos copos, algo havia sido deixado ali por alguém que provavelmente esquecera na hora que os deixou. E certamente apenas ela o encontraria, pois os outros colegas estavam em direções cujo trabalho necessitava de uma atenção isolada deles.Tinha um círculo vermelho no centro que o selava, pegou com as mãos e viu que se tratava de uma espécie de carta dobrada de forma não muito igual aquelas que eram enviadas pelos correios, havia uma inscrição no lado oposto ao selo de tom avermelhado que indicava que havia sido deixado exatamente para ela. Como numa intuição forte e passageira resolveu por o papel dentro do bolso e deixar para dar-lhe atenção numa hora mais apropriada.

Hesse sabia que tudo aquilo que escrevera valia também para ele, de alguma forma precisava continuar com aquela sensação que o conduzia a um novo estado do seu ser. Não entedera à primeira vista o que tudo aquilo no papel de arroz queria lhe dizer, mas percebeu que tinha um significado oculto e que somente aqueles cujo "Sinal da Lua" poderia ser notado, eram quem de fato participavam da mesma essência. No dia seguinte notara algo diferente na medida em que ia caminhando em direção ao lugar onde costumava apreciar certos sabores que gostava. Aquilo para ele tornava-se uma descoberta no qual o que se procurava e o próprio buscador eram um só, envolvidos numa percepção de que somente a unidade poderia conduzir. Pedira algo gelado para beber e procurou ficar resguardado das conversas sem nexo que pairavam pelo ar vindas de um grupo de pessoas que conversavam sem assunto definido. Lídia não o percebera, estava tão atarefada sozinha que não desviava o seu olhar com muita frequência, apenas focava naquilo que estava imediatamente à sua frente. Então tirou um dos papéis selados do bolso e deixou justamente numa posição que era quase que inevitável que não se barrasse com ele, assim fez enquanto ela havia entrado para a parte dos fundos do lugar e logo após ele saiu em direção à porta de vidros largos que o levava ao lado de fora.

O que seria que fluia por ela para que ele a identificasse com o sinal e a levasse consigo aonde havia sido indicado? Percebia que existia algo no momento em que escrevia as palavras, até então sem sentido, que não se deixara perceber. Percebia o tom dual daquilo tudo, sempre aprendera sobre a dualidade das coisas assim como as pessoas procuravam expressar para ele e isso o arrasava. Deixava-o descontente com a dificuldade de se ter tantos sentidos duplos para lidar, e o pior de tudo era que sempre atribuíam qualidades boas e ruins a tudo! Por que deveriam todas as coisas serem boas ou ruins, todas as sensações delas devem ser sensações e isso basta. Não há um porquê necessário de se buscar simetria em todos os lados, nada é perfeitamente igual em todas as suas partes. A unidade o fazia pensar naquilo tudo e o deixava um pouco menos opaco. Sentia que em tudo havia uma deformidade natural, uma lado não reto e que possuia uma beleza realmente verdadeira. A lua encarava essa não simetria natural, suas formas eram completamente únicas e possuia a dualidade como uma única essência. O seu hermafroditismo de energias era o seu sinal, pois trazia consigo a essência do sol, do que resplandecia as suas tonalidades como numa orgia de cores vindas do astro rei. E apesar de todos os seus raios misturados como um só, era incapaz de perder aqueles que eram os encantos da sua própria feminilidade.

Abraçara aquela sensação e deixou-se consumir, sabia que a seriedade de si mesmo estava pronta para ser aniquilada num só golpe vindo da própria essência que lhe pertencia. Sossegado em um momento silencioso, sabia que coisas nesse instante estavam a acontecer, o fluído mágico que conduziriam a todos os que possuiam o sinal, estava seguindo um curso forte e natural. Que assim seguisse! Pensou Hesse num estalo de insconsciência já trazida pela sensação que tal situação lhe propiciava.

Tomas adentrava o apartamento, ainda com forte cherio de incenso de bejoim a pairar sob o ar, e desabou no divã verde-musgo respirando fundo. Sentiu uma falta de ar leve e marcante, sentia sempre isso quando não procurava se levar tão a sério. Coisas não muito fáceis de se lidar, eram sensações tão fortes nele que sabia que criavam uma forma adocicada ao toque de certas pessoas. Elas quando adentravam o seu mundo recluso deixavam-se pertencer a ele e adoravam tal figura que podiam encontrar, quando refletidos no espelho que vinha de tudo o que Tomas era as imagens de suas almas verdadeiras saltavam-lhes sobre a mente. Maravilhas como essas eram necessárias para que tudo sempre se renovasse e a figura de Shiva o deixava clara tal necessidade de não manter-se estagnado. Que vontade de enebriar-se novamente no aroma de tais cabelos, isso o afagava como força voraz. Assim quase que deixando uma lágrima escorrer pelo canto do olho, como aquelas que simplesmente escorrem pelo fato de se ficar deitado sobre um lado do corpo por muito tempo, vislumbrou algo que estava pelo chão próximo a porta. Como num salto pegou o papel branco e voltou novamente a deitar no cálido divã, adimirando tal imagem alva que amanava de suas mãos.

Leu como num suspiro tudo aquilo que era destinado a ele, e alisavava o selo vermelho enquanto pensava no que o alegrava em tom intimamente admirador. Algo havia percebido nele a sua real natureza e isso o acariciava, deixando-se relaxar mais ainda no divã enquanto dizia uns versos sem pensar vindos de seu pensamento:

"Eu ainda fogo-sossego,
Caminhante sem treino
A trilhar o existir.

Não, não me olhes de cá.
Apenas quero que vá,
Ao girassol és maior.

Abrindo as portas que fechei,
Sem saber eu deixei."

Vinha a presença de longe como se tivesse perto, nesse momento desejou que tudo aquilo se realisasse. Queria beijar-lhe a nuca e deixa-se conduzir por sensação de mocidade viva que pulsava pelos braços e pescoço dela. Assim sentiu a melancolia dos poetas procurando deitar-se no aroma que vinha do jardim dos fundos, do divã que o acolhia como em abraço desconhecido.

sexta-feira, 2 de março de 2007

Contos interditos - Parte 9

Manifestar

Hesse adormecera fitando a aquarela que havia pintado e que pendurara na parede oposta aos pés da sua cama, a pôs lá para que justamente quando acordasse fosse a primeira coisa que seus olhos vissem. A figura era de um pássaro imponente, com plumas vermelho alaranjadas e que sob o alto da cabeça trazia um turbante branco feito de algum tecido de grande leveza. A ave olhava aos céus como se observasse algo que estava num estado superior ao seu, ou como se ele fosse a própria divindade a servir de canal para que suas bençãos fluíssem para aquelas pessoas cuja direção o seu olhar seguia. No escuro não podia ver com clareza os tons da pintura, mas sabia que era a coisa mais bela que de dentro de si poderia ter tomado forma física. Sabendo que isso era uma façanha um tanto delicada, pois segundo ele a beleza estava num nível de evolução superior ao toque. Adormecera com melodias na cabeça, mas não sabia de onde vinham...

Por várias horas eu poderia sentir o seu corpo levemente frio abraçado a um travesseiro enquanto profundamente dormia, ele não mais ali estava. Na grande maioria das vezes o repouso do seu corpo estava associado a poder de viajar, morrer todas as noites e voltar à existência física quando o sol já havia se manifestado quente e presente. A penumbra que o envolvia era de um silêncio que chegava a impressionar, tudo parecia eternamente constante naquelas horas em que vivia intensamente o seu sono, solitário e particular como tanto gostava. Poderia domir com outras pessoas, mas a idéia de compartilhar o seu sono era algo que ele ainda não deixara que invadisse por inteiro a sua vida. Acredito que nesses momentos ele ficava ali atento ao lado do corpo na noite que passava, simplesmente observando o seu respirar profundo e quem sabe deixando-se envolver pelas melodias que ouvia enquanto a morte noturna começava a lhe tornar dormente os sentidos do corpo.

Ainda podia-se ouvir as gotas da chuva escorrendo pela parede do lado de fora do seu quarto, não entendo como o musgo e sua tonalidade verde-terra pareciam fazer ecoar aquele som que a natureza tocava somente àqueles que tinham os ouvidos apurados. Os olhos dele abriram enquanto o seu corpo dava um leve movimento de preguiça e descanso merecido. A visão ainda embassada não impediu que visse a divindade figurada no pássaro de aquarela, fazendo-o cochilar por mais alguns instantes de uma forma breve e de profundidade maior que a noite inteira. Todos os tempos virão, serão sempre lembrados como se os vivesse a cada instante e serão lembrados em seguida de forma espôntanea e natural. Hesse despertara por completo, mesmo sendo difícil para ele trazer de volta ao corpo tudo que sua mente sentira nesses minutos que valiam como séculos de revelação e quietude.

Fora apresentado à magia do seu teatro mágico, tudo aquilo por um momento impossível de ser descrito foi mostrado a ele de forma tão clara que sabia que se não pusesse em prática o quanto antes iria esquece-lo de vez, e ele não iria poder tomar forma. Molhou o rosto no banheiro próximo ao quarto e preferiu não ver-se no espelho, aquele que ainda habitava nele não poderia ser visto com os olhos. E ele apartir daí passou a encarar isso com total encanto e respeito, como uma promessa que tivesse guardado entre as mãos após ter sido feita em algum ritual interior. Enxugou o rosto voltando ao quarto e sentou no seu tapete cor de vinho que se estendia logo abaixo da imagem do deus de turbante. Lá próximo havia uma caixa de madeira de aparência misteriosa, uma gravura feita de prata de um serpente que engolia parte da própria calda relusia na claridade do quarto. Hesse ficou um pouco olhando para ela como se tentasse retomar todas as sensações que sentira em seu breve sono, ele sabia que elas já o estavam deixando naquele momento e precisava tentar preserva-las de alguma maneira.

Abriu uma caixa e retirou uns papéis em branco, tinham a textura um pouco rugosa porém eram de grande delicadeza. Olhando bem pra eles consigo lembrar de ter visto um desses sob a forma de marcador com uns desenhos já envelhecidos em um livro que Hesse deixara aberto em cima da cama enquanto deixava o quarto atrasado para um compromisso. Alisou um deles e começou a escrever, com a caneta de cor preta que também tirara da caixa, alguns dizeres:

"Você mostrou-se merecer adentrar o que de maravilhoso já existia. Aquilo que já existia em você mesmo e que somente agora a chave lhe é dada para que vivencie espontaneamente aquilo que vem de sua própria alma. Tudo torna-se-á visível, assim seremos um em espírito e consciência, isso é tudo."

Tinha algo como um endereço em baixo de tais dizeres, mas eu não pude notar com clareza. Mais uma coisa pude ler antes que Hesse dobrasse o papel e o fechasse com um selo vermelho de forma circular onde havia a mesma gravura que pude observar na caixa antes de a abrir:

"... a você algo novo brilhará. Alguém também vivenviará em unissidade o que agora compartilhamos, esta pessoa você saberá quem é pois lhe será mostrada pelo Sinal da Lua. Traga-a consigo aonde falei, que assim seja."

Rapidamente fizera três cópias dos mesmos inscritos, repetindo o processo de selar o papel de folha de arroz, guardando-as dentro da mesma caixa. Hesse sabia que nesse instante era utilizado como canal para que algo pudesse se expressar, na verdade ele sabia que aquilo tinha que fluir e que bloquear tal sensação seria negar-lhe a existência.

quinta-feira, 1 de março de 2007

Contos interditos - Parte 8

Sintonia

Acordara cedo contra a vontade de um entorpecer profundo depois da noite passada de melancolia em sua cama ainda feita. Sabia das coisas que sentia e ela procurava encarar com naturalidade a sua timidez que muitas vezes acabava por chamar a atenção sem querer. Poucas pessoas realmente se importavam com ela ao ponto de dar-lhe uma atenção que satisfizesse a vontade de liberar-se um pouco sem certos receios. Costumava ler certos livros não muito fáceis de se achar, lembro de vê-la em algumas tardes escondida por trás das estantes do fundo da livraria onde esses livros poderiam ser abertos e lidos sem que pudesse ser observada. Sabia da existência de certas forças além da propria consciência e era nelas que procurava se fixar quando todo o resto se envolvia num tom opaco e sem vida típico das cidades, que perderam a essência campestre que ela tanto apreciava quando ia em direção às montanhas em suas viagens de solidão. O seu quarto ficava no alto e ela podia observar o jardim que no fundo da sua casa ainda lhe preservava um pouco do espírito que alcançava em certos estados de elevação. Seus cabelos longos eram de incrível beleza, principalmente quando podiam ser vistos sem que ela percebesse, pois sempre evitava se fazer notar àqueles que não tinha um contato sequer.

Aquele dia estava diferente e ela gostaria de poder experimentar algo novo, poder entregar-se a certos sabores que considerava bastante importantes para se lembrar que ainda parecia como as outras pessoas. Foi então em direção à livraria para pegar um livro que encomendara com o livreiro e que falava sobre certas influências lunares que ela gostaria de entender melhor. Na verdade isso é muito mais profundo, prefiro esperar até que possa ver como Vick deixará essas influências se manifestarem nela quando lhe achar conveniente.

Sentira um forte cheiro de chá após dar os primeiros passos opostos aos olhos do livreiro, resolvera parar um pouco e folhear o livro enquanto sentia o vapor da bebida a envolver-lhe os cabelos. Bebia vagarosamente o seu chá de canela com flor de laranja e se distraía com o livro aparentemente antigo, quando percebeu no canto do seu olho a figura de alguém que a observava num certo ar distraído. Parecia que a moça que lhe servira estava pensando alto e resolvera descansar os olhos em direção à sua pessoa sem a maior preocupação. Por um instante as duas se fitaram e sorriram de uma forma meio encabulada, percebi que haviam notado uma na outra aquela essência que ambas já haviam sentido em momentos de solidão. Coisas que confesso, não são muito simples de descrever, ainda mais quando se sabe que essas sensações parecem vir de algum plano espiritual ainda pouco notado entre a maioria das mulheres.

Ao chegar em casa preferiu não subir em direção ao quarto, a sensação de descoberta estava forte demais para que ela se limitasse ao espaço tão pequeno comparando-se com aquele que tinha quando sentava no jardim dos fundos. Ainda era marcante a presença dele no jardim, tanto que sentiu-se incomodada quando chegou mais perto e ainda podia notar o aroma etério de tal pessoa. Foram mágicos aqueles tempos onde pode sentir realmente a força divina que emanava de suas mãos ao alisar-lhe os cabelos e inspirar o ar que ela expirava. Os deuses todos pareciam sempre apreciar tal momento, pois tudo se excluía naqueles instantes, exceto a árvore que atrás parecia os envolver por inteiro de uma forma reservada e secreta.

Lídia saiu mais cedo, aquele dia ela precisava deixar que outras coisas se manifestassem além da sua simples rotina diária. Sentia uma força feminina muito sutil a correr pelo seu corpo, os seus cabelos um pouco acima dos ombros permitiam que sentisse a briza fresca que soprava naquele início fim de tarde e que ela adorava com satisfação. Resolvera caminhar, naquele local tudo era tão perto que ela sentia com um único passo cruzar todo o caminho e toda a vida que fluia por aquele dia que ela só acordara agora. Era como se todo o resto do dia tivesse sido como estórias contadas a ela na cama antes de dormir, sente-se elas todas como realidade, mas só o sono inocente trará o que de fato importa. Aí sentiu que a chama apagada daquelas horas apenas acendia o que ainda realmente tinha para ficar, o que ainda fazia sentido, por mais que esse não fosse tão comum à primeira vista.

Lembrara-se da imagem de Vick, ainda desconhecida, com um livro negro nas mãos. Que sorriso profundo vinha dela! Sentia-se estranha, meio que magnetizada por alguma força que direcionava, sem que percebesse, o seu olhar de encontro à algum ponto de interesse da força. Bastando que para isso simplesmente se deixasse levar a um estado de lerdeza mental, típica quando lavava as mãos e podia sentir aquilo que limpava-lhe a alma. Sabia que existia uma sintonia fina, mas extremamente importante entre as duas na forma como a tal força as sintonizou. Eu podia sentir nos olhos dela a mesma sintonia que a fizera trocar palavras breves, mas de verdadeiro significado, quando servia aquela bebida gelada à Hesse. Já o notara outras vezes, mas somente da última percebera a forma de sacerdote meigo com que olhava para ela e respondia-lhe amorosamente os estímulos. Sabia que ele era uma mistura de diversas nuances de seu ser, desde uma amizade terna à um fogo inabalável que lembrava sentir quando dançava ao redor de uma fogueira nos seus tempos de menina. Esses tempos não eram longes, pois a fogueira ainda acesa sempre conduzia os seus passos a momentos de torpor e maravilhas. O divã verde-musgo nesse momento tornava-se rubro e sentia-se saudada pela figura que atentamente a observara do alto da parede.