Victor Requião

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segunda-feira, 9 de abril de 2007

Contos interditos - Parte 19

Ligação

A noite corre, segue pelos lugares que o sol tocara antes com sua face de luz. Assim em todos esses lugares as experiências são sentidas e muitas vezes esquecidas. As pessoas como de costume possuem ações costumeiras que por mais que não pareçam, acabam por ter pelo menos uma que destoa das demais. No cair da tarde, após o suor do corpo já ter sido banhado por águas frescas, o corpo amolece. E todos os pensamentos que não necessitam de movimentos dele vêem a tona, levando a existência nesses lugares a um certo sentido de contentamento.

Assim que a primeira brisa fria sopra, os seus habitantes se recolhem. Dentro de suas janelas, acendem o fogo que tanto ilumina o lar acolhedor quanto cria sombras que brincam durante toda a noite através de reflexos nas paredes. As sombras parecem ganhar mais vida e movimento na medida em que adormecem, assim liberando a noite de um sono profundo. Como se de fora da janela pudesse ainda ser ouvida a respiração de um deus que dorme.


Vick tinha um costume diário antes de se deitar, fazia isso desde a época que era pequena. Gostava de acender os carvões que sempre colocava dentro da tigela de barro cozido que comprara de um viajante, que num fim de tarde parado perto da calçada de uma rua, vendia alguns objetos de grande simplicidade e beleza. A pequena tigela tinha riscos que pareciam ondas que se sobressaíam umas sobre as outras de forma que pareciam se entrelaçar como se estivessem em um ritmo uniforme. As chamas acalmavam todas as suas sensações, eu percebia que transmutavam tudo o que de grosseiro vivera durante o dia no mais puro silêncio. Assim como realçava em tons pulsantes o que de mais belo vinha de dentro de si. Os seus gestos com as mãos, como se embalassem as chamas, não lhe causavam medo algum. Havia respeito naquele momento, entre o próprio fogo e ela. E nenhum dos dois tinha a mínima intenção de romper com aquele vínculo sagrado e juvenil.


Ao redor da tigela de tom dourado, algumas pedras reluziam ao tremular das chamas. Criando fagulhas de luz que se refletiam por elas mesmas e pelo quarto como um todo, fazendo tudo encarar uma forma inteiramente nova de percepção. Ela não era sempre calma ao ponto de sempre ver tudo aquilo da forma como de fato era, distorcia as coisas quando inquieta deixava o fogo mais agitado quando o tocava de forma mais ligeira que o de costume. Esse movimento rápido das mãos era como se as quisesse lavar, limpar os pensamentos que através delas escorriam e que deixavam o fogo mais rebuliço e brincalhão. Vick nesse momentos de grande dúvida, logo sentia o seu corpo amolecer e o esticava de uma vez sobre a cama de lençóis finos. As sombras continuavam a se refletir pelas paredes durante todo o resistir dos carvões através da noite, e vendo-a assim sua pele fica mais alva que quando iluminada pelo sol de uma manhã de poucas nuvens.


Hesse olhava pela janela as luzes que cintilavam de lugares aparentemente distantes, lá certamente alguém também olhava as que vinham do lugar onde morava. Desta forma criava-se um elo entre eles, os seres que trocavam sinais pelas luzes que compartilhavam.
Desta maneira somente o caminho traçado pelo pensamento pode ser realmente levado em consideração, lá tudo pode ser criado e destruído em apenas um simples querer. Realmente aquilo tudo que poderia ser visto através dos olhos não existia, na forma mais íntima das coisas elas não existiam como se apresentavam. A realidade que manifestavam nada mais é que um mero espelho por onde a mente pode se apresentar, assim na medida que os estalos na consciência vão mostrando a não necessidade deles. Somente assim reina a clara luz de todas as coisas, a mesma que naquele momento Hesse sintonizava com o ser que de longe o olhava.

Tudo o que se pode tatear como externo tem a sua verdade latente no interior, e aí está a grande chave para que atenções não sejam dadas ao lado cego das coisas. Simplesmente vê-las por dentro, mas não como quem as olha, mas simplesmente aceitando a sua existência como coisas! De nada importa nesse momento as formas que possam ter, de nada servem a maneira como elas podem causar impressões nos sentidos, tampouco os sabores que podem causar ao pensamento momentâneo. Isso Hesse sabia, e no fundo lhe doía a sensação de conhecer as respostas para as perguntas que ainda não foram feitas, a ponto de serem claras para si mesmo.

Comments
1 comments
Anônimo disse...

O encantamento desse conto se deve ao fato de podermos estar sintonizados com tudo e todos ao mesmo tempo...e, sim,,,temos todas as respostas que precisamos dentro de nos mesmos e no entanto - ou por sermos demasiadamente cegos e tapados pela realidade diária, quando nao podemos ter tempo para nos mesmos - fechamos nosso terceiro olho e nosso mundo se turva...

omo é maravilhoso poder entrar na net e ter como presente os seus contos!

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