Victor Requião

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quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Contos Interditos - Parte 25

Coincidências

Com o passar do tempo, o desenrolar das experiências que são vividas através dos anos, uma percepção nova começa a se tornar cada vez mais constante. Cada ato, seja um olhar ou o mais terno sorriso, cada um à sua maneira está sintonizado com todos os demais. É muito simples perceber que nem tudo faz parte de uma mera coincidência casual de eventos que se tocam, e simplesmente assim agem como se estivessem desprovido de importância ou realidade. A ilusão de Maya, como aprendi com os hindus, define bem o que temos como "nossa realidade", apenas uma mera distração sensorial, uma teia qual todos seguimos e nos conectamos. Ai está o grande sentido, como numa teia de aranha que brilha numa manhã ensolarada de inverno, cada filamento da teia está diretamente associado à um outro filamento, que por sua vez está associado à um outro, de maneira que olhamos de forma única e percebemos que todos estão intimamente conectados com todos os outros. Então, o simples balançar de um dos fios, realiza o seu balançar por todos os demais, continuamente...

Estamos todos conectados, mas nem sempre percemos a sintonia que existe com os outros pontos dessa conexão. O meu cansaço, muitas vezes sentido como grande força a tomar-me o corpo, será que de alguma forma exerce influência sobre outro corpo, independente ou não de ele saber da minha existência? Isso não é simples de perceber, também não dá para notar até que ponto essa sincronicidade entre os pontos pode ser sentida. A grande teia que conecta todas as mentes e que a fazem responder como uma única força, em essência, se torna obscura quando se procura simplesmente observar uma única de suas facetas.

Ah, Lídia. Tão forte é a sensação que me vem dela, poderia dizer que a vejo como realmente a mais solar das mulheres. Dela, vejo o reflexo do próprio Sol, como que banhando em uníssono um imenso campo de trigo, fazendo refletir o mais puro dourado dos raios que ganham a forma da natureza enquanto da terra reluzem. Ao mesmo tempo sinto a noite escura e mágica vinda de Vick, nela o oposto à Lídia se manifesta. E da completa beleza dos seu cabelos negros e longos, é ainda mais encantador a lua que raia e simplesmente a banha com a sua luz. Nela a força lunar se manifesta, refletindo os caminhos que a noite parece esconder, como se simplesmente guardasse os verdadeiros mistérios onde somente a poucos seriam revelados. E desses caminhos as mais internas e verdadeiras sensações seriam manifestas.

As duas simbolizavam uma mesma pessoa, apesar de gostos e jeitos aparentemente diferentes, na verdade isso era o que mais as unia. Uma verdadeira essência feminina que trazia vida aos versos que Hesse muitas vezes escreveu. Esses versos muitas vezes eram escritos de uma forma incomum, sabia que aquilo era algo forte que lhe vinha pelas mãos, e simplestamente era como se necessitasse fazer com que o mundo de alguma forma pudesse sentir. Então costumava escrever ao Sol e à Lua, saudá-los numa forma intimamente particular. Lembro de observá-lo na janela do seu quarto com um pequena tigela branca de louça, lá costumava queimar alguns papéis com versos escritos enquanto o Sol incidia fortemente sobre eles. Na sua forma de ver, era como se o próprio Sol sorvesse toda a essência que havia posto nas palavras que escrevera no papel. Da mesma forma, em noites de luar, fazia secretamente aquele mesmo ritual à Lua. Deixava que com o tremular das chamas que se alimentavam dos seus versos, a essência íntima ali contida fosse elevada às alturas, e assim tocasse aqueles que a ela estivessem sintonizados.

Uma vez leu um deles em voz baixa, pouco antes de colocá-lo nas chamas que brilhavam na tigela:

"Pegarei um raio de sol,
E com ele enviarei o meu pensamento
Que parte para a humanidade.

Para o sol não existe a distância,
Apenas para a consciência dos homens ela é real.
Pegarei um raio de sol.

Mandarei com ele o meu olhar,
Para que sorria para cada ser
Que com os olhos do corpo não posso ver.

Assim eu pego um raio de sol
E torno-me livre como o pensamento."


O vento soprava leve, quase não se podia ouvir. Lídia e Vick se encontram sem querer enquanto caminhavam em direção ao ponto brilhante entre as árvores. Olharam entre si como se procurassem por mais alguém, mas não havia ninguém, somente elas. Ali as duas forças havia se encontrado, simplesmente se fixaram numa única só e isso certamente havia um sentido íntimo de ser. Tudo ao redor, a natureza, apenas ela realmente poderia sentir e acolher aquele universo de sensações naturalmente humanas, e por si só dignas da própria divindade. Os cabelos de Lídia vaziam voltas, como espirais que feletiam a pouca luz que havia por lá. Simplesmente tremulavam conforme os seus passos tocavam o chão das folhas que reluziam, mas não somente de Lídia eu percebia aquela luz. Vick e o seu encanto exalavam como pura beleza de uma noite que escurece sem que sentimos, como quando somos crianças e brincamos a tarde inteira com o sol a brilhar e a nos fazer escorrer o suor da meninice pela testa. Isso sim nos faz perceber o quanto podemos brincar como crianças, apesar dos anos que seguem e floreiam cada dia que passa mais o nosso caminho pela eternidade. O eterno retorno de podermos sempre ser a mesma essência, vinda dos mesmos deuses, frutos dos mesmos amores que tanto os sábios falaram e que somente os mais íntimos do campo sentiam na sua simplicidade e modéstia.

Elas caminham, apenas observo e me deixo conduzir pelos sentimentos que me colocam no colo enquanto as vejo seguir a direção da luz por entre as ávores. Lá estavam silenciosos, apesar de ouvir algumas frases soltas que Dhrei murmurava enquanto fixadamente comungava com o próprio fogo:

"... regava as flores, era de noite. Sentia nelas o beijo do Sol e da Lua. (...) um sorriso nosso, uma coincidência verdadeira."

domingo, 9 de dezembro de 2007

Contos Interditos - Parte 24

Luzir

As lembranças trepidavam juntamente com as chamas da fogueira que Hesse acendera assim que a noite começou a mostrar os seus primeiros sinais. De lá do alto onde estava pode perceber a magnitude da consciência que permeava todos os lugares e formas. Sabia que em momentos como aquele, o véu que separa os bastidores da vida e a visão clara dos espectadores era completamente posto de lado. Não por algum ser superior ou alguma força mística, mas pela grande força da egrégora que todos os que compartilhavam do Sinal da Lua poderiam fazer pulsar quando estavam com o seus pensamentos numa mesma direção, desta forma a sintonia poderia ser sempre aquecida. Para simbolizar isso, quando ouviu passos quebrando o silêncio de fim de tarde ao pisar as folhas secas das árvores, desceu da pedra alta e foi em direção aos gravetos que havia amontoado em forma de fogueira. Assim deu vida às chamas que logo começaram a pintar com fagulhas a escuridão, servindo de farol àqueles que chegavam e que naquele momento da noite poderiam se perder ao entrar no bosque.


Os passos se tornam mais próximos, Tomas andava vagarosamente por entre as folhas caídas das árvores que o circudava. O tom misturado da claridade do sol que arrefecia com a cor dourada da lua que surgia dava um caráter novo e misterioso ao chão daquele lugar. Na verdade sei que o mistério de fato é pura impressão, pois o mais misterioso dos acontecimentos em todas as vidas humanas é elas de fato não possuírem misterio algum! A simplicidade com que se leva e encara os acontecimentos da vida é a maior de todas as forças que conduzem ao despertar da verdadeira beleza das coisas. O vento soprava quieto, mas a camisa branca de Tomas com linhas verticais que intercalavam o verde e o laraja claro tremulava como se o próprio vento o saudasse, aquilo era natural. A natureza sabe e cuida daqueles que adentram ao seu reino de encantos com tal suavidade e respeito, assim era.

Não sabia muito ainde ir, afinal o papel de arroz estava ainda em seu bolso, e qual já havia lido diversas vezes, não dizia exatamente por onde deveria seguir. Apenas umas pequenas palavras eram ditas, o resto era deixado para que ele próprio encontrasse o rumo e o sentido de tal encontro. Achou graça como os sinais estavam por toda a parte, a lua e todas as folhas secas que luziam do chão a ele significavam muito mais que simples folhas caídas no chão, conduziam a uma bleve claridade por entre as árvores! Seguiu sem exitação por entre elas, num total sentido de intimidade com todos os seres que habitavam a floresta, e nesta hora entre o fim de tarde e o início da noite já estariam em suas tocas ou em busca de alimento. Percebeu com o tempo que o som dos passos que ecoavam por entre as folhas não vinham somente dos seus próprios pés, por algum tempo estava num único compasso que o fizera pensar que estava só a andar por aquelas terras, lá estava Dhrei. Fez um gesto com a mão esqueda com o intúito de que ainda na penumbra do dia que se esvaia ele notasse a sua presença. Assim foi, o gesto imediatamente foi retribuido e caminharam os dois na mesma direção como se naquele instante já soubesse aonde ir.


Hesse alimentava o fogo com os gravetos que havia recolhido por entre as árvores, a chama balançava ao passar do vento e parecia não se importar. A sua concentração era algo que sempre me chamava a atenção, mas agora estava diferente, parecia algo mágico observá-lo alimentando as chamas com aqueles gravetos enquanto olhava fixamente nos olhos do pŕoprio fogo que ardia. Era hipnótico e ao mesmo tempo longínquo os "olhos do fogo", e acredito que este tenha sido o maior de todos os sinais até agora, não simplesmente a claridade que fez Tomas e Dhrei encontrarem a direção, mas a força que servia como farol a todos aqueles que haviam se permitido entrar naquele reino de árvores e folhas que luziam do chão.

Ao sentir a presença dos dois, Hesse os olhou fixadamente de forma a convidá-los a não terem qualquer tipo de receio de se aproximarem. Sei que isto não era necessário, pois a intimidade que compartilhavam desde a última vez que estiveram juntos na casa de Tomas havia deixado claro o quão forte era a força que os unia. Sentaram em círculo ao redor da fogueira que trepidava ao céu que escurecia, lá ficaram quietos enquanto os estalidos das chamas davam a impressão de que o fogo realmente estava vívido e compartilhava também daquela mesma sensação de fraternidade. Hesse tocou com cuidado o papel de arroz que estava dentro do bolso de sua camisa, sabia que ainda não era o momento certo. Os outros fragmentos daquela mesma folha que escrevera sobre o sinal ainda não tinham chegado, com os braços abertos tocou nos ombros dos dois que estavam próximos, um em cada lado do seu corpo, e simplesmente sorriu...

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Contos Interditos - Parte 23

Reinvento

As sensações silenciaram durante um tempo, algo que tende sempre a nos levar para um estado diferente, talvez cego de certas coisas que estão simplesmente acontecendo ao nosso redor. Sei que tudo sempre está a acontecer, bastando um simples gestou ou uma simples coragem de ir lá e movimentar a roda, para que o curso da história de uma de nossas vidas seja direcionado para caminhos completamente diferentes, sejam tortuosos à primeira vista e depois revigorantes, ou muitas vezes plácidos e desconhecidos. Esse tal momento constante e infinito de completo reinvento de si mesmo é algo que não percebemos à primeira vista, essa constante necessidade da própria consciência de poder metamorfosear-se em um completo ser novo e fazer valer a sua própria vida. Vida esta que se permeia em milhares condidas em uma só, como o próprio raio do sol pode ser decomposto em outros multicores, mais intensos ou quietos a depender da força da chuva que o banha.

Sei que Hesse e Tomas sentiram e continuarão sempre a sentir tal pensamento, não o sinto como antes, talvez este processo tenha servido para que uma nova forma de simplesmente observa-los e participa-lhes da essência fosse descoberta. E quando paro e respiro fundo, sentindo o aroma dos cabelos delas, e da forma como dançavam ao redor da fogueira, percebo o quanto lúcido esse novo caminho se mostra à minha frente. Ah, os sorrisos...

"De trás do que sempre foi visto,
Algo estaria sempre a ser mudado.
Das mais leves sensações,
Por mais que em essência sejam as mesmas,
Seriam sentidas em novas cores.

E do gesto leve de simplesmente ser filha do próprio universo,
Ela sorriu olhando ao céu.
O vento soprou,
Trazendo sorrisos banhados em Sol."

Lídia e Vick)

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Contos Interditos - Parte 22

Sintilar

Existem formas diferentes de se encarar cada detalhe da vida, nem tudo que aparentemente se manifesta de uma forma significa necessariamente esta forma. Todas as maneiras de se olhar são válidas, mas nenhuma delas é a absoluta. Principalmente aquelas que são rotineiras, mais fáceis ou simplesmente porque as pessoas em geral a seguem como certeira de se alcançar a melhor escolha. Da mesma maneira seguem os ditos opostos, percebo que na medida que se vai caminhando eles se mostram cada vez mais fortes e conciliáveis, tão estranha a sensação parece depois de tantos anos de grande luta entre eles como dois lobos ferozes que convivem dentro da consciência. Tudo precisa ser sentido, não meramente com os sentidos ordinários do corpo, mas principalmente com a forma que se tem de percebê-los além da simples maneira de ver.

O sofrimento é algo que precisa ser sorvido em cálice de cristal, pois é nele que tudo o que de forte e desnecessário pode ser consumido até a ultima gota. Tudo bem, nem sempre essa última gota é derramada de uma só vez, mas pelo menos em momentos como esse se percebe a necessidade de derramá-la e de admirá-la no último gole. Isso não significa que as suas sensações não mais aparecerão, com certeza virão! Mas isso é uma outra estória, certamente já se foi construído o hábito de encará-las de uma forma saudável. O hábito se torna firme muitas vezes na presença do sofrimento, mas é tendo noção disso que é cultivada a sua força e a sua influência em todas as ocasiões. Pois o sofrimento nada mais é que uma alegria abafada, e a alegria um sofrimento desprendido e livre. A liberdade tem o papel importantíssimo de trazer a verdade ao que aparentemente é contraditório, apenas os opostos são pólos de uma mesma força que precisa ser sentida em equilíbrio. Pois se a balança não for sentida e o seu ponto central não for tido como meio de alcançar a paz, um dos lobos vai certamente uivar mais alto. Fazendo com que o outro fique quieto por um tempo, até que ele se manifeste com muita força reivindicando o seu papel em um dos lados.


Drhei acordara mais cedo naquele dia, o vento fresco soprava criando um certo arrepio quando lhe passava pelos cabelos. Sabia que mais um dia se levantava, e que aquele seria algo que o elevaria a lugares mais altos, certamente isso o deixava tranqüilo e um pouco destemido também. Estava metido entre alguns papéis quando, por intuição, olhou o relógio e viu que precisava ir. Tateando o papel dobrado dentro do bolso da blusa, como que para ter certeza que ele realmente existia, caminhou em direção a porta e a fechou de forma a não fazer qualquer ruído.


Suas violetas estavam com botões novos, fazia tempo que não as observava como nesta manhã. Parecia que muito tempo se passara desde o momento que as colocou na sacada da sua janela, eram realmente as vidas que saudavam o sol por ela quando acordava atrasada e não se lembrava de levantar as mãos em direção a ele. A chaleira fez o ruído característico indicando que a água já estava a ferver, umas folhas colhidas no quintal estavam em cima da mesa. O aroma a exalar pela casa indicava que aquele chá seria a sua comemoração íntima por haver merecido tal dia de percepção. Ainda tinha algumas horas antes de sair, então Vick bebeu o chá prestando atenção a cada movimento que ele fazia em sua boca ao liberar o seu sabor.


Tinha muita coisa a escrever, foi se deitar na metade da noite preparando uns estudos que estava desenvolvendo sobre algumas linhas de pensamento que o interessava. Eram coisas que certamente à grande maioria das pessoas pareceriam coisas desnecessárias, mas isso não era verdade. Era possível notar toda a importância que aquilo tinha pois eram claras as influências que exerciam na mente e na forma de agir de Tomas. Sua forma respeitosa e ao mesmo tempo descontraída destacava ainda mais o senso natural que ele tanto procurava cultivar. Acordou tarde, as horas passaram de forma tão rápida que nem sentiu. Tempo ainda lhe restava para tomar um banho frio, como de costume fazia quando sentia ter dormido muito, e comer um pouco de pão com a geléia de limão que comprara no dia anterior.


Lídia suava em frente ao vapor quente que subia, mexia com certo vigor o líquido vermelho amarronzado que havia dentro da panela. Estava tinturando um tecido branco, com algumas abas que por mais que tentasse empurrar para dentro do líquido teimavam por ficar fora dele. Seus cabelos presos atrás da nuca davam a ela um ar camponês, fazendo lembrar as mulheres antigas que colhiam ervas nos prados com a finalidade de obter tinturas de várias cores, desde flores amarelas até raízes grossas de tom avermelhado. Enxugou o suor que escorria-lhe pela testa e apagou o fogo, parecia que as abas já haviam perdido a sua brancura original.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Contos Interditos - Parte 21

Depois do sol

Não sabia o que dizer ao olhar e encarar aquela imensidão verde à sua frente, realmente o solstício elevara o ar campestre daquela tarde de sol tímido. Chegara antes do momento dito pelas palavras escritas no papel de arroz, não sabia exatamente porquê, preferindo ficar sentado encostando numa árvore de tronco grosso e galhos frondosos. Os raios do sol que entravam pelos galhos de todas as árvores daquele bosque criavam um clima de serenidade mística que realmente era digno dos tempos antigos.

(Não me refiro aos tempos que passaram como se fossem melhores que os atuais, mas simplesmente percebo a forma natural como muitas vezes as coisas mais simples e belas da vida eram tidas como de suma importância, sendo respeitadas pelo seu valor e pela sua importância como fonte de equilíbrio. Desta forma, pode-se no íntimo sentir que o caráter materno perdido quando se cresce e se distancia dos laços da meninice familiar, é possível de ser encontrado em sua forma mais verdadeira no seio da Natureza.)

Aquilo o fazia sentir-se irmão das criaturas que silenciosamente o observavam de longe, na verdade toda a sensação de irmandade era sentida e compartilhada, porém cada ser expressando-a à sua forma. Lá ficou contemplando o sol que reluzia pelas folhas, fazendo-o ainda mais notar a humidade da terra o envolvendo como envolve a raiz de todas aquelas árvores. O vento leve soprou fazendo-o adormecer, não tinha o que temer então entregou-se ao sossego que parecia vir junto com a briza ao fazer rodopiar no ar as folhas amareladas que do alto caíam.

Era engraçado o contentamento de Hesse ao acordar e perceber que o sol ainda estava no céu, o tempo do cochilo pareceu que havia durado uma noite inteira. Mas olhando no relógio notou que apenas haviam se passado alguns minutos desde o momento que observara as horas no relógio enquanto caminhava em direção ao verde do bosque. O sol para ele naquele momento era a sua direção e o seu reflexo, realmente sabia que seria a sua eterna lâmpada mágica. Sempre os seus raios seriam o melhor conforto para que pudesse aquecer a sua mente em momentos de inquietação, ou até mesmo quando ela se mostrasse revolta à meditação.

Ali perto, pode-se ver um amplo prado, dourado pelo matiz que nessa hora irradia do chão daquele lugar. Após andar um pouco, depois de ter se espreguiçado como criança ao acordar de um cochilo no colo da mãe, foi em direção a um ponto que parecia ser o mais alto. Lá certamente poderia observar o prado dourado com total imensidão, o verde misturado com as fagulhas vindas do sol lhe despertavam sensações tão suas que se achava estranho pelo fato de muitas vezes esquecê-las por completo. E então parado, observando toda a relva de cores misturadas, sentiu que tudo começava novamente. Sua roda havia sido impulsionada por força mais elevada que ele e essa força o dizia nas entrelinhas que aquilo era necessário. Que tudo o que passara de maneira profunda, e muitas vezes angustiante, agora arrefeceria como chama lenta. Tudo novamente estava diante de si, como o louco figurado no topo do abismo de si mesmo. Sabendo que precisa ir adiante, mesmo que os erros que não mais existem ainda criem ecos em sua cabeça tentando chamar-lhe a atenção.

Olhou para a breve claridade da lua que surgia, o sol havia banhado a sua outra face. Ouvem-se alguns passos sobre as folhas caídas das árvores, a noite surgia...

terça-feira, 10 de abril de 2007

Contos interditos - Parte 20

Espiral

Dhrei acordou ainda de madrugada de um sono pesado, sua consciência despertou exatamente após um resquício de sonho estar se esvanescendo em sua mente. Algo forte o trazia uma lembrança vaga, sentia que eram consequências de uma frase que há um tempo atrás não lhe saia da cabeça. Havia lido num livro de um inglês¹ que tivera uma história realmente destoante dos demais da sua época, lá dizia:

"I want (...) anything, bad or good, but strong."

Sabia que as palavras têm poder e que deveriam ser usadas na mais suave forma, com elas muitas coisas podem ser mudadas nas entrelinhas. Podem agir como agentes transformadores elevando as coisas de um polo a outro, numa maneira tão sutil que somente são percebidas as consequências de tal mudança. Assim sabia que aquela frase realmente ecoara em sua vida, desde o momento que a escutou com a voz interna da sua cabeça enquanto lia, e que haviam movimentado grandes forças de formas absolutamente desconhecidas. Ainda mais que não sabia internamente como tais forças o estavam a abalar, sentia-se como o ar que era ferido pelo pêndulo das emoções inconscientes.

Aquilo tudo iniciara um processo de desagregação em todos os que possuem o sinal, percebo isso na forma como eles têm encarado as nuances dos acasos que se iniciaram apartir do momento que receberam o papel de arroz. Haviam desequilíbrios constantes, formas estonteantes que teimavam em se definir de maneira realmente sustentável. Todos tinham suas experiências diárias com mais dor e sensação, entendo que a dor na verdade não significa sofrimento. Mas como uma etapa da real separação de todos os pontos que constituem as partes mais importantes da personalidade de cada um deles. Na verdade percebo que as palavras de poder que Dhrei repetia mentalmente serviam apenas para constatar o contínuo seguir das forças que haviam sido postas em movimento através de Hesse. Elas eram neutras, sinto que não possuiam qualidades que poderiam qualifica-las em um lado bom ou ruim, simplesmente seguiam como energia andrógina deixando rastros que ainda preservavam as mudanças por elas iniciadas.

Todos os povos tinham a idéia da degeneração e da regeneração enrraizada na parte mais espiritualizada da sua cultura. A tríade sempre presente demonstrava o quanto os três elementos primordiais estavam sempre a direcionar a vida: a criação (regeneração), a manutenção e a destruição (degeneração). Desta maneira, a roda infindável do universo estaria sempre a girar.

A roda em movimento tende a dar origem às coisas, a moer as impurezas de forma que se tornem passíveis de forma. Assim através da essência (masculino) e da matéria (feminina) a dualidade do gênero é conhecida, mas na verdade apenas se manifesta como polos da mesma força, vibrando nas mais diversas maneiras de um polo a outro. Penso que na verdade essa força dual tenha dado realmente o caráter múltiplo das coisas, assim como entre 1 e 0 existem infinitos números. Por que então as vidas não seriam uma criação contínua de aspectos masculinos e o femininos?

O equlíbrio entre os ditos opostos precisa ser mantido, porém a força mantenedora que os abraça não é estática. A sua sabedoria está na maneira como encara até que ponto os laços tênues que ligam um ponto a outro devem ser mantidos. Pois caso perdurem muito, a evolução será prejudicada e a roda simplesmente ficará presa no seu próprio eixo. Assim por mais que as coisas estejam num jeito calmo e tranquilo, ou ruim e agoniante, isso será passageiro! Realmente o será, a manifestação do outro lado precisa também acontecer, a percepção disso envolve em clara luz aquele que a obtém.

Por que as coisas sempre nas suas formas mais naturais são sempre encaradas como desagradáveis quando mostram a sua outra face para bater? O carater destruídor da tríade é o mais delicado e incompreendido de todos, tudo que já se manteve estagnado por muito tempo precisa ruir. Assim com seus pés ela gira a roda, de forma nem sempre fácil de lidar e aceitar, mas ela gira! Reduzindo tudo em finas partes, onde todas as impurezas de tudo que foi degenerado lá está como mistura inseparável. Como a grande estátua de barro que o oleiro moe em pó fino para assim dar forma a uma outra de semblante mais imponente.

Até que ponto o pensamento no futuro impediria que as mudanças que passava pudessem atuar? Dhrei tinha essa dúvida, mas acredito que não era somente dele. Cada um agora arava a sua terra, sabendo que tudo que havia sido antes posto nela serviria de adubo, para a semente do sinal que compartilhavam pudesse germinar...

1. Aleister Crowley (12/1/1875 - 01/12/1947)

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Contos interditos - Parte 19

Ligação

A noite corre, segue pelos lugares que o sol tocara antes com sua face de luz. Assim em todos esses lugares as experiências são sentidas e muitas vezes esquecidas. As pessoas como de costume possuem ações costumeiras que por mais que não pareçam, acabam por ter pelo menos uma que destoa das demais. No cair da tarde, após o suor do corpo já ter sido banhado por águas frescas, o corpo amolece. E todos os pensamentos que não necessitam de movimentos dele vêem a tona, levando a existência nesses lugares a um certo sentido de contentamento.

Assim que a primeira brisa fria sopra, os seus habitantes se recolhem. Dentro de suas janelas, acendem o fogo que tanto ilumina o lar acolhedor quanto cria sombras que brincam durante toda a noite através de reflexos nas paredes. As sombras parecem ganhar mais vida e movimento na medida em que adormecem, assim liberando a noite de um sono profundo. Como se de fora da janela pudesse ainda ser ouvida a respiração de um deus que dorme.


Vick tinha um costume diário antes de se deitar, fazia isso desde a época que era pequena. Gostava de acender os carvões que sempre colocava dentro da tigela de barro cozido que comprara de um viajante, que num fim de tarde parado perto da calçada de uma rua, vendia alguns objetos de grande simplicidade e beleza. A pequena tigela tinha riscos que pareciam ondas que se sobressaíam umas sobre as outras de forma que pareciam se entrelaçar como se estivessem em um ritmo uniforme. As chamas acalmavam todas as suas sensações, eu percebia que transmutavam tudo o que de grosseiro vivera durante o dia no mais puro silêncio. Assim como realçava em tons pulsantes o que de mais belo vinha de dentro de si. Os seus gestos com as mãos, como se embalassem as chamas, não lhe causavam medo algum. Havia respeito naquele momento, entre o próprio fogo e ela. E nenhum dos dois tinha a mínima intenção de romper com aquele vínculo sagrado e juvenil.


Ao redor da tigela de tom dourado, algumas pedras reluziam ao tremular das chamas. Criando fagulhas de luz que se refletiam por elas mesmas e pelo quarto como um todo, fazendo tudo encarar uma forma inteiramente nova de percepção. Ela não era sempre calma ao ponto de sempre ver tudo aquilo da forma como de fato era, distorcia as coisas quando inquieta deixava o fogo mais agitado quando o tocava de forma mais ligeira que o de costume. Esse movimento rápido das mãos era como se as quisesse lavar, limpar os pensamentos que através delas escorriam e que deixavam o fogo mais rebuliço e brincalhão. Vick nesse momentos de grande dúvida, logo sentia o seu corpo amolecer e o esticava de uma vez sobre a cama de lençóis finos. As sombras continuavam a se refletir pelas paredes durante todo o resistir dos carvões através da noite, e vendo-a assim sua pele fica mais alva que quando iluminada pelo sol de uma manhã de poucas nuvens.


Hesse olhava pela janela as luzes que cintilavam de lugares aparentemente distantes, lá certamente alguém também olhava as que vinham do lugar onde morava. Desta forma criava-se um elo entre eles, os seres que trocavam sinais pelas luzes que compartilhavam.
Desta maneira somente o caminho traçado pelo pensamento pode ser realmente levado em consideração, lá tudo pode ser criado e destruído em apenas um simples querer. Realmente aquilo tudo que poderia ser visto através dos olhos não existia, na forma mais íntima das coisas elas não existiam como se apresentavam. A realidade que manifestavam nada mais é que um mero espelho por onde a mente pode se apresentar, assim na medida que os estalos na consciência vão mostrando a não necessidade deles. Somente assim reina a clara luz de todas as coisas, a mesma que naquele momento Hesse sintonizava com o ser que de longe o olhava.

Tudo o que se pode tatear como externo tem a sua verdade latente no interior, e aí está a grande chave para que atenções não sejam dadas ao lado cego das coisas. Simplesmente vê-las por dentro, mas não como quem as olha, mas simplesmente aceitando a sua existência como coisas! De nada importa nesse momento as formas que possam ter, de nada servem a maneira como elas podem causar impressões nos sentidos, tampouco os sabores que podem causar ao pensamento momentâneo. Isso Hesse sabia, e no fundo lhe doía a sensação de conhecer as respostas para as perguntas que ainda não foram feitas, a ponto de serem claras para si mesmo.

terça-feira, 3 de abril de 2007

Contos interditos - Parte 18

Chama rubra

Existem momentos em que o lado interior assume facetas de grande profundidade e encanto, dessa forma o inconsciente manifesta as sua vontades em forças nem sempre domadas. Seria esse um momento de completa entrega ao que se verdadeiramente é? Nesse momento de pele desnuda, as formas que adormecem, inertes durante todo o caminho pulsam com grande vida e vontade de vivenciar todos os seus estímulos. Não é diferente toda a exaltação discreta que se pode manifestar com tamanha sinceridade, na medida que se é correspondido de forma também sincera em momentos não efêmeros?

Assim Tomas sentia o pulsar do que surgia de dentro de si, vindo de lugares nem sempre conhecidos. Sentia todo o desejo a saltar-lhe pelos olhos e assim suavizar todo o seu corpo, ainda mergulhado em sensações meio descrentes com relação a toda a sua vida. Desta maneira tudo parecia dormir como se esta forma sempre fosse a mais natural de todas, sem que a presença dele causasse um mínimo sequer de incômodo ou desconforto. As formas dormiam, e assim preferia as deixar para que todo o momento de contemplação pudesse ser observado de todos os angulos que podia ter na forma como esta ali deitado, largado a si mesmo em total conteplação na tonalidade verde-musgo do seu divã. Parecia como um deus, porém seus traços humanos davam sempre a noção da irrealidade dos homens misturada com todas as imagens da natureza, realmente repletas de verdades.

A porta levemente quebrou o seu silêncio, algo silenciosamente ali respirava através dela. Separando todo o mundo normal do seu mundo de isolação no alto das montanhas, realmente alguem ali queria adentrar tal mundo e assim fluir como fumaça perfumada através da brisa que soprava pelos seus campos. Levantou, as pernas não se contralavam por inteiro, mas tentou e assim chegou até a porta sem ver com muitos detalhes os passos que dava em sua direção. Levemente a abriu e viu uma forma feminina de tamanho pequeno, que assim o fazia lembrar da forma andrógina de Shiva. Naquele momento notou a presença dos cabelos, realmente já eram uma única força naquele momento. Consigo ver que a bipolaridade do gênero, feminino e masculino, que cada uma expressava à sua maneira não existe mais. Fundiam em força única, onde ela nos seus braços ainda sem força, se igualava ao corpo dele como se quisesse ser conduzida aos mistérios por ele compartilhados. Só pude ouvir o som da porta se fechando quando os dois já estavam em total comunhão de olhares no divã, não eram necessários grandes gestos. Tudo podia ser exalado com os sentidos mais ocultos, e tudo aquilo exaltava a grande força que em uníssono levava Lídia e Tomas aos campos cultivados de trigo que rodeavam os templos dos antigos mistérios.

Como numa tentativa de preencher algo que faltava, Tomas levantou e caminhou em direção à mesinha em baixo da imagem do deus hindu. Lá abriu uma pequena gaveta e desembrulhou uma vareta de incesso que segundo ele o conduzia às sensações vindas dos planos superiores. A brasa acessa fazia companhia a eles, parecia como um ser mitológico a observa-los com total aceitação do lado oposto aonde estavam juntos. Vejo que a neblina que acompanhava Lídia na manhã do dia anterior não vinha da rua por onde ela caminhava, mas de si mesma. Todo o lugar parecia preenchido por um tom etéreo e fresco, a nitidez das coisas era perdida e tudo se isolava mais ainda do mundo dos cegos. Que viesse tudo aquilo, e que assim os conduzissem aos momentos verdadeiros que estavam a tomar forma para aqueles que a luz da lua ganhava um tom especialmente novo.

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Contos interditos - Parte 17

Dança

O véu de Isis, intocado de forma real por todos aqueles que vislumbraram a sua beleza alva. O verdadeiro sentir vindo de tal toque envolve sensações que emanam da pele fina cuja beleza timidamente se revela. Ainda que a sensação macia por trás do fino véu tenha deixado transpassar algumas centelhas de sua beleza, ele silenciou o mais importante de todos os mistérios ditos conhecidos. A multiplicidade de formas de se sentir uma mesma coisa...

Lídia caminhava de forma leve e seus passos me pareciam uma dança quando olhava de longe a sua forma feminina de quadris formosos a embalar o vento. Nesse momento a vejo como uma grega antiga, com suas sandálias de solado fino e laços cruzados pelos tornozelos de pele clara. Um vestido simples que a torneava o corpo e assim a fazia se confundir com a própria neblina que naquela hora da manhã flutuava pela rua por onde seguia. Seus cabelos de tom misturado entre o loiro e o castanho tinham cachos que caiam como espirais por suas costas eretas, e enrriqueciam ainda mais a dança silênciosa que a conduzia à verdadeira Grécia dos antigos festivais aos deuses do Olimpo.

Por mais que tudo parecesse costumamente natural, havia sempre uma forma nova que dela se manifestava. Encontrava-se sempre disposta a certos gestos de profundo significado, porém só se sentia apta a de fato faze-los quando sua mente de ímpeto a conduzia em sinais que ela percebia como se assim não fizesse, não mais lhes seriam mostrados pelo universo. Isso aconteceu quando viu Tomas pela primeira vez e sentiu a sensação que os antigos gregos tinham como enviadas pelos próprios deuses, a força mística Agape. Verdadeira como o vinho que continha todas imagens da paisagem que as uvas, após serem colhidas acabavam por trazer consigo, quando em seus cestos eram carregadas pelos campos de trigo. A beleza de tudo aquilo ainda era novo para ela, mas o suor que escorria-lhe por trás dos cabelos e que deixava a sua nuca corada, parecia emanar do próprio corpo das belas garotas que transmutavam o elixir de Baco nas formas corpóreas mais delicadas. Em goles dados em encontros secretos...

Assim também sentira quando viu Vick, na sua forma de menina delicada e intocada pelos ares urbanos típicos do local onde trabalhava. Lembrava ainda do aroma do chá que ela pedira, aroma que muitas vezes durante a madrugada sentia quando acordava durante a noite e banhava-se em águas frias, como se os banhos na madrugada a remetessem a momentos de purificação enquanto sabia que as pessoas estavam a dormir. Gostava de brincar com suas cartas de Tarot, repletas de palavras em alguma língua antiga, que comprara na livraria estranha próxima ao trabalho. Elas serviam como chave para os antigos ritos das florestas, onde os bardos tocavam suas flautas e encantavam os seres a dançar ao redor de fogueiras que mais pareciam focos por onde a força da terra trepidava. Assim ficava até o clarear do dia e saudava o sol antes de acordar para mais uma de existência.


O soltício estava próximo e todos os arautos do Sinal da Lua iriam novamente se encontrar, como uma única força de Luz em toda a escuridão dos anos que antecederam os atuais. Onde poderiam de forma verdadeira e livre, novamente se encontrar em noites que sempre elevariam as maravilhas por eles intimamente compartilhadas. Fazia pouco tempo que haviam sido contactados pela força que através de Hesse tentava destacar dentre o mundo de cegos, aqueles que ainda eram os verdadeiros responsáveis por trazer o equilíbrio humano à natureza. Tão atualmente esquecida e tida como desprovida de importância por outros que vêem unicamente nas forças da modernidade o real significado das suas vidas.

Desta forma os dias passavam e continuam a passar, acredito que tudo silenciosamente acabava por transformar os antigos membros da irmandade da natureza em seres cada vez mais novos. Eram purificaçoes contínuas, nem sempre indolores, que os levavam ao estado de percepção necessária. Libertando-os dos grilhões que durante toda a caminhada tentam prender os seus pés contra os passos da mudança. Mas é preciso ser como o Louco figurado em uma das cartas do Tarot de Lídia, frente ao precipício a única verdadeira direção é aquela que conduz às sensações dos sóis dos novos dias.

quinta-feira, 29 de março de 2007

Contos interditos - Parte 16

O saber do despertar

De onde tudo poderia ser formado? Alguns falaram de uma tal solução cósmica que tomaria diversas formas, através das vibrações em que fosse posta em contato. Assim tudo tem sempre sido, onde coloca-se a mente ela tende a modelar a essência das coisas conforme vibra a elas. Seria tão simples se o bem comum pudesse ser completamente ciente de todos esses fatores que de várias meneiras intereferem e direcionam os acontecimentos e fatos que se vive no caminhar diário. Desde os aromas aos sorrisos, tudo isso tem o seu lado completamente profundo e misterioso nas entre-linhas, mas poucos realmente se deixam sentir por tal atitude. O seu mistério, qual não representa intimamente mistério algum, é a gota de água que se espalha em círculos concêntricos quando vindos dos céus e caem no lago quieto dos dias a serem vividos.

O sol, quando o dia começa a raiar, parece sugar a cada momento o tempo que segue. Levando consigo todas as experiências vividas sob sua luz e a mocidade do futuro, fazendo tudo se resguardar de forma eternamente atemporal. Através de conceitos humanos o tempo foi definido, mas de nada serve além de qualquer sensação permitida aos olhos do sol e principalmente por trás dele.

As mãos quando postas de forma a tapar levemento os ouvidos criam uma sonoridade diferente, é como se pudesse tocar todas as formas e assim percebê-las de outro ângulo. Não de cima ou de baixo, tampouco lados. Mas de dentro para fora, como a alma que tenta aflorar do corpo de forma fina e passageira quando nos repousamos na inconsciência. Ou ainda quando criamos completo desapego e nos despojamos à simplicidade.

A tentativa de acreditar em tudo que foi dito, sentido e tido como grande direção por onde as coisas no fundo iriam seguir com alegria, é realmente não simples de se sentir. Quando se cresce e se começa a ter as dúvidas que por mais que haja preparo para elas sabendo que um dia chegarão, recebe-se a grande força contra todas as suas e assim tudo arrefece. Nesse momento todas as palavras ditas como profecias vindas de seres mais altos, que durante a infância se mostravam caridosos, se esvaem como pó no meio do deserto. A sensação de nostagia de lugar nenhum simplesmente é perfeita, pois de tudo se sobressai e a todos procura não olhar. E quando a preparação mostra-se quase que eficaz, depois de tudo intimamente acreditado com certa desconfiança, sente-se como um ser qualquer dentre os diversos, factível de ser completamente renegado por quase todos onde a vista pode alcançar. A dormência conduz ao esquecimento rápido dos sentidos, levando à misericórdia do último momento de todas as incertezas.

Sentir a vida que segue, serenamente profunda a sensação a tomar-se como irmão dela de forma tardia. Assim há a unidade entre as criaturas, cada uma com sensações à sua maneira. Através da não compreensão dessas palavras por alguem que as houve, este emudece e mostra-se não vibrar na sintonia que conduz à verdade intocada diante de todos os fracassos mentirosos.


Hesse caminhava pela rua tentando olhar para as coisas de forma como se algo escondido pudesse ser percebido, mas tudo parecia estranhamento natural. Caminhava, queria que seus passos durassem mil noites e que tudo aquilo pudesse ser aveludado a cada pegada deixada no chão da Terra. Conduza, ser irmão, o seu caminho longo na calma forma como se deita, e assim cada vez mais translúcida fica a sua liberdade.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Contos interditos - Parte 15

Segundo despertar

Chegara em casa tarde, tudo parecia repousar num sono esplêndido como se a natureza ao seu redor fosse sempre entregue ao silêncio e à escuridão. Assim podia ouvir a sua respiração enquanto entrava pela porta e seguia pelo corredor, seus passos pareciam firmes, mas no fundo a firmeza estava longe de sua mente. Navegar pelo torpor de um momento como aquele era a única opção que seu corpo desejava, ficar sem movimentos e somente perceber as impressões dos sentidos de forma estática e doce. Essa leveza de um cansaço estonteante a guiava ao descrédito de tudo, realmente tudo que no fundo sabia que estava a acontecer enquanto ela estava ali largada e inerte. Estavam muitas pessoas a dormir, outras a ler ou simplesmente a olhar para céu. Talvez em direção à claridade da lua que ela sabia que estava lá no alto, e somente o seu reflexo pelos vidros da janela meio aberta conseguia ver de onde estava.

Fitou com os olhos o braço direito e ficou observando o contorno enevoado ao redor dele, ainda mais realçado pela penumbra que lá permanecia. Naquele momento não desejava absolutamente nada, nada realmente existia ali ou além, para que pudesse ser dada um atenção envolvida de desejo e vontade. Entre davaneios dementes, pensava em todo significado da existência que estava imersa, desde as flores até as pessoas que seguiam suas visas e obtiam um certo sucesso com tudo aquilo. Ela sabia que o sucesso na verdade era uma própria invenção humana, como um degrau por onde aqueles que passaram primeiro disseram que ali tudo poderia ser visto de forma diferente. Como se de lá, do degrau mais alto ou baixo do sucesso, toda a representação da vida em sociedade fosse digna de satisfação e alegria. Isso tudo era belo e perfeitamente viável para ela, apesar de que de nada adiantava ficar cogitando sobre as possibilidades de encontrar os ditos sinais que a levariam às diversas escadarias onde se podia ver de cima. Procurava não pensar nisso, afastando sem muito êxito os pensamentos que faziam sempre com que se lembrasse de sempre ter a esperança ao seu favor. Sentia que prender-se aquilo a angustiaria ainda mais, deixando-a cega quando novas direções se mostrassem à sua frente

Tantas cabeças perto dela a deixavam intimamente agoniada, tantos como ela tentando seguir. Mas algo sabia que existia de diferente entre os demais e ela, os sinais se manifestavam em lembranças e acasos que traziam um significado inerente a todo aquele momento. Se ao seu favor ou não, não sabia. Preferiu tentar deixar que a força de manifestar o seu desejo de mudar fosse maior que as dores que tentavam momentaneamente derrubar-lhe as forças que usava de forma nova como meio de lidar com mais estabilidade frente ao que se manifestava diante seus olhos. Era até mesmo assustador o olhar de todos eles, tantos medos por ali a pairar sob suas cabeças. Eram iguais, porém com tons que variavam do cinismo à mocidade bela de algumas outras jovens como ela, com a diferença que os sorrisos eram sempre pouco percebidos entre eles.

Lá ficou até adormecer em seu quarto, entregue com completo desprendimento ao cansaço que lhe retirava do corpo e a deixava leve por todo o ambiente. Dá para perceber que não estava consciente, mas no seu íntimo sabia que de forma natural havia a sensação de que o pulsar dos sinais que percebera, não a faria ser como antes, nem mesmo que tentasse. Tudo já havia se iniciado e era questão de tempo para que Vick pudesse começar a sentir a realização das atividades que dentro de si a impulsionavam em direção às novidades de subir novos degrais. Durante todo o caminhar, sabia que poderia sorrir.

terça-feira, 20 de março de 2007

Contos interditos - Parte 14

Primeiro despertar

Dhrei tivera um sonho lúcido como algo realmente vivido, sonhara com uma casinha feita de pedra onde nos fundos havia um grande lago de águas plácidas e frescas. Ainda posso sentir a brisa que de lá soprava, era de um contentamento que levaria aquele que tivesse um gosto para as pequenas coisas à estados inimagináveis. A casinha era singela, sem muitos adornos que a fizessem destoar do clima magestoso que a paisagem inspirava, suas paredes de pedra poderia ser confundidas quando vistas de longe com a protuberância da montanha, que continha o lago e ela também, que extendia-se pelo vale. Havia uma árvore de tamanho médio ao lado da pequena casa, era engraçado como as folhas que dela caíam no outono deixava o seu telhado repleto de tons multicores trazendo a sensação de que ela existia num universo puro e intocado pelas superficialidades dos homens.

Sentia-se dentro da casa, ele e Tomas, vestidos de forma simples como verdadeiros homens cultivadores da vida campestre quando de forma súbida a porta se abriu. Entrava Hesse com o rosto um pouco cansado, porém emitindo grande luz. Sua barba estava por fazer, dando a impressão que havia se aventurado por muitos lugares e não tivera tempo para reparar pequenos detalhes da sua aparência. Lá ele entrou, com um sorriso de grande mocidade nos lábios e assim fitou os dois rapazes de uma forma extremamente cortez, dando-me a impressão de querer envolvê-los nas sensações que fluiam-lhe pelo corpo. Trazia na mão um galho de árvore, um tanto grosso, que provavelmente lhe servira de cajado durante suas andanças.

Tomas sorriu em únissono e assim sentiram uma certa alegria por estarem os três em momentos como aquele. Sabia que Hesse havia vislumbrado sinais da própria natureza e se identificara completamente com eles. Como de fato é necessário quando não se acostuma facilmente com as coisas e arriscar-se mais, procurando sempre seguir os caminhos que tais sinais indicam.


Dhrei acordou sentindo um cansaço tão profundo que o deixou inerte durante vários minutos, sentia conscientemente as sensações que vinham do seu corpo e de olhos fechados permanecia. Olhando para ele poderia ter a impressão que estava novamente a dormir, mas não estava. Dormente deixou que tudo aquilo não tivesse explicação alguma, não necessitava de que mais nada lhe viesse com definições, ainda mais num momento como aquele depois de tudo que vivera em seu sonho. Viu que existiam caminhos a seguir e que não podia ficar parado, ou acostumado com apenas um deles. Aquilo tudo o deixou malancólico, nada muito diferente das forças que o tomam sempre que está num momento de transição entre direções aparemente opostas. Encontrava-se na região nebulosa entre os caminhos que estava disposto a seguir, a incerteza dos passos e a forma como os sinais iriam guiá-lo no fundo faziam sentir-se um pouco leve por ser ele mesmo e poder de alguma maneira ter acessos a essas oportunidades da vida. Que os sinais da natureza continuem a vir e a rodopiarem todas as suas formas e direções! Que tudo se transforme, fragmentando-se em mil pedaços desnudos de início após um novo fim...

quinta-feira, 15 de março de 2007

Contos interditos - Parte 13

Sincronicidade

Tudo em todos os universos emana a sua própria consciência, repleta de vivências e sensações fixadas pelo tempo de tanta existência. Assim são o efeito que elas causam, deixando centelhas de mudança em tudo que tocam quando se elevam aos céus, rodopiando numa dança espiral que é belo de se ver. Por mais que sintamos que os momentos podem ter passado ou simplesmente pareçam como sonhos que tivemos numa noite que não se pode lembrar, as vivências deixam marcas na pele que sempre terá a mesma forma apesar dos efeitos do tempo. Por isso é preciso despir-se e deitar na grama, deixar que a humidade da terna invada o corpo e o abençoe com o que de mais sagrado possa existir, o pulsar da respiração do mundo. As árvores são as melhores amigas que podemos em silêncio conversar, tranquilas são suas almas que nos permitem vê-las em forma humana, somente para que assim nos sintamos mais à vontade para olhar-lhes nos olhos. Que elas sempre concedam, sem tomar qualquer forma, tal despredimento. Que sejam como são, árvores e caminhos honestos por onde a vida pode ir e vir.

Olhando para Tomas tenho a impressão de vê-lo como um arvorezinha da montanha, do tipo que crescem os musgos ao pés de suas raizes fazendo-lhes companhia. Assim é bela a sensação de ser tocado intimamente por tais seres esverdeados que não se intimidam pelo tamanho, mas se deixam contemplar pela vontade de ali estar. Existem outros tipos de pequenas árvores que preferem arriscar-se à certas alturas, já existem outras que preferem servir de abrigo permitindo que algo possa conviver ao seu redor e se sentir cuidado. Ainda existem os tipos mais simples de todos, os que se tornam sábios conselheiros em momentos de inquietação. Sempre havendo o convite ao sossego e aroma que exala de seu corpo quando gentilmente permitem que arranhemos-lhe o tronco e deixemos que sua fragrância nos purifique as narinas.


Sentia o som lhe invadir por completo, como se aquilo o conduzisse à um entendimento mórbido de toda a realidade que via. Sonolento ficava na medida que podia tocar, deixando o som que levemente suas mãos faziam num pequeno tambor, preenchesse completamente o local. Isso o arrebatava para dentro de si fazendo contemplar todo a realidade que ainda não era possível perceber quando estava no seu natural estado de desperto. Realmente era uma sensação estranha, saber que existem forças atuando nos bastidores de sua própria consciência e ter que por um momento sair de si mesmo para que elas docemente lhes mostrem suas formas! Hesse sabia e procurava através das batidas alucinógenas do seu tambor olhar de frente para tudo aquilo que estava por trás de seus pensamentos mais secretos. Esses são realmente os momentos de intimidade que poucas pessoas sabem quem existem, são os mais reais e repletos de vida. A mesma vida que podemos ver e tocar, porém numa forma desnuda e sem coberturas criadas por conceitos ou análises impostos por nós mesmos. Tudo existe, mas para ser mostrado precisa-se adentrar os portais internos, de forma limpa como alguém que andando descanço sente o relevo onde pisa sem se incomodar com a leve dor que algumas pedrinhas possam lhe fazer nos pés.

Queria vê-la, banhar-se completamente no perfume que emanava naturalmente da sua pele. Parecia que tudo simplesmente tornara-se calmo e morno, mas sempre há um momento de temporal após uma certa calmaria nos sentidos. Era possível ainda poder lembrar do seu sorriso como antes? Apesar de todas as andanças não muito fáceis de se perceber sabia que aquilo que o envolvia nesse momento o impulsionava a certas atitudes despojadas. Isso era contraditório muitas vezes com o que pensavava a pouco tempo atrás, simplesmente deixar-se compartilhar por algo incerto dentro de si. Queria envolver-lhe novamente nos seus mistérios e fazer com que ela nem sentisse quando adentrasse a cortina de sensações que separava o mundo silencioso e perfumado do seu divã das sensações cegas e amorfas que vagam sem direção do lado de fora da porta. O envolvimento o fazia sentir pontadas no estômago que já aprendera a identificar desde a infância quando sentia que algo no mundo íntimo de sua consciência metafísica se manifestava. Aprendera a conviver com isso, apesar de que muitas vezes o queimavam da mesma forma que o gelo queima a pele de quem o subestima.

Tentava falar com ela em pensamento, como se isso pudesse ser controlado e realmente vivido por ele. Não sabia onde exatamente agora ela estava, apesar de poder de longe ainda sentir a sua forma pequena. Tudo estava solto a girar frente aos olhos de Shiva e isso tinha algo de mágico e hipnótico, queria beber de tal elixir deixando que a lucidez dos que verdadeiramente se permitiram mergulhar nos aromas mais íntimos da existência humana pudesse ser sempre preservada no aconchego de seus braços. Sendo que lá poderia ouvir a voz falar-lhe sobre tudo o que viveu, de errado e certo, mas sempre deixando calmamente claro o quanto relativo podem ser os múltiplos significados de certas palavras. E a mesma voz dizia, como num eco vindo de dentro de sua cabeça, para que deixasse tudo sair. Que deixasse que o medo pudesse ser expelido com total naturalidade, como o organismo procura se livrar de algo extranho quando sente que isso o conduzirá cedo ou tarde ao seu não perfeito estado de equilíbrio.

Lídia não contara verdadeiramente a ele de onde tudo aquilo de dento dela vinha realmente. Sabia que precisava ser observada com atenção, ser notada com os sentidos que as pessoas não sabem usar. Aquilo era nobre para ela, poder se fazer compreendida em gestos e sensações sem que sejam necessárias muitas palavras para expressar a virtude que sabia hav nela. Lembrara-se do momento que o viu encostado numa árvore naquela praça não muito visitada, enquanto procurava um lugar sosegado para meditar um pouco. Aquilo aconteceu pelas forças certas do acaso que sempre direcionavam os sinais aparentemente soltos em uma grande manifestação da sincronia entre almas. Sentou perto e não quis se fazer notar, aquilo era nítido demais para que alguma atitude além do sentir pudesse ser usada. Realmente não era necessário, todas as árvores eram suas companheiras e sentia-se protegida pelo fato de que momentos como aquele pudessem tomar forma no seio delas. Algo o tocou, podia notar isso quando olhou para o lado e viu o olhos castanhos esverdeados olharem profundamente por entre os seus, como se observassem algo nunca antes visto. Não conseguia falar, era uma vontade surpreendente de rir. Poder rir como garotinha e não ter que se preocupar com nada, pois mesmo que houvesse alguém nada poderia ser impedido e nem meramente percebido. Naquele mesmo início de noite entregara a ele sua vida secreta, o toque da manifestação verdadeira de sua vontade. Repleta de tons e aromas como aqueles vindo das flores que se deixam às mãos do montanhês sincero serem despidas suas pétalas enquanto o envolvem em sua essência infantil.

Em seu reino via o tom calado da natureza figurada naquele móvel verde, onde repousara com total tranquilidade como se seu corpo tivesse o peso de uma montanha. Ficou a falar-lhe em sentidos, mostrando as formas que vinham dela quando ele encostava o nariz em seus cabelos deixando-se sentir pela fragrância que tocava o ar à cada palavra por ela pronunciada. Todo o néctar de seu incenso e toda a chama de sua luz a conduzia em um sono que mais parecia uma droga vinda dos lugares distantes, onde os deuses de todos os povos se conciliam em uma única força vinda do eclípse oculto entre o Sol e a Lua.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Contos interditos - Parte 12

Unidade

Apesar dos caminhos novos que as pessoas tem levado no decorrer dos anos de modernidade, sentimentos antigos ainda continuam a permear o ar que elas respiram. Nos bastidores do cotidiano, universos paralelos dentro de todas as vidas tomam forma e liberam suas forças. É a verdade adjacente nas energias que os sentidos percebem debilmente, sendo decodificados os sinais vindos dessas sensações tão naturais quanto o próprio vento. As chamas que sobem aos céus refletem todo esse lado que poucos conhecem, daqueles que lidam com a terra em essência deixando-se levar pelas brincadeiras do fogo. Rodeando as pedras que tomam formas próprias entoam certas melodias ao vento que as levam e as mantem em local divino. Sentem a presença da força mãe que os guia em completo desprendimento dos erros por eles cometidos, sabendo que o acerto será a transmutação desses erros através do calor que brota de si mesma.

Na visão do pensamento consigo ver tudo aquilo, e assim me entregar a todas as fagulhas que ao fogo dançam sob a luz da lua e somente naquele universo brilham, apesar de a grande maioria das pessoas só lhes perceber a forma. Assim pode-se ver do alto a mistura entre esses dois grandes universos humanos, a divindade daquele que permeia todos os atos de vontade e o outro que colhe os seus efeitos sem perceber. Os seres que pertencem ao primeiro são os responsáveis pela beleza de todas as coisas, pois é através deles que a roda das mudanças pode continuar o seu movimento incessante quando esses se unem e põem suas próprias sensações como força para que ela possa girar. O outro universo colhe os seus frutos, com um leve contentamento fluem as influências exaladas de tudo o que foi sentido e criado em completo êxtase no primeiro. Dessa forma são todos aqueles que caminham e não sentem os seus pés tocarem o chão, pois simplesmente percebem o passo e não a caminhada como a própria inspiração que os faz continuarem a seguir.

O sinal já se refletia como farol longínquo, de lugares distantes podem quase se misturar às estrelas de tom amarelado assim tornando notada a sintonia que entre eles já havia sido revivida por algo que estava além de todos os deuses. Isso tinha um caráter impossível de observar, mesmo se estando ciente que não é necessário qualquer entendimento para lidar com tudo aquilo. Apenas a vontade de entregar-se por completo a tal abstração importava e a consciência de ser alvo de certos efeitos, nem sempre tão fáceis de lidar, precisava estar desperta. Essa é a união pelo fogo, o poder metafísico que em um único momento pode juntar duas ou mais almas numa única fagulha e conduzí-la dentro de uma redoma de vidro morno, para que se possa assim maturar e ganhar o sabor perfeito para que ao sair da redoma purifique por completo as diversidades até então unidas numa só.

Era vital seguir o caminho se permitindo encarar os seus desvios, principalmente quando se poderia ver aquela pequena passagem que sempre convida para que se siga por ela. Tudo precisava ser completado mesmo que na sua extrema brevidade, a morte é diária e o nascimento se dá a cada instante que se levanta após um novo despertar. O inacabado maltrata aqueles que possuem o Sinal da Lua, nada mais os incomoda que a sensação de poderem fazer parte de algo que toma caminhos inpensados e os conduz simplesmente à contemplação dos sentidos. É tão forte tal sentimento que necessitam se isolar, ficarem silenciosos sem que o mundo os perceba durante esse tempo. Preferem ir em direção aos rochedos onde podem deitar, misturarem-se à terra não vendo a figura que seus corpos possuem, nem tampouco sentir o aroma que lhe possuem a pele despida. Ficarem lá e se banharem nus na chuva de tal intimidade, onde podem beber da mesma água que cai sem ao menos pergurarem-se o porquê de tudo aquilo. Sim, eles precisam disso como o ar que respiram, assim como precisam sentir novamente o que os conduz aos amores ininterruptos. Como num estado de destruição e contínua recriação dos universos em seu interior, tornam-se singulares e diferentes daqueles que conseguem se isolar na multidão e apenas indiretamente receberem as forças do universo criador.

Subjulgar a razão pelos encantos verdadeios de Eros, que arranca as limitações da existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz tudo experimentar a mais alta sensação de desprendimento. Assim sente o camponês que avista uma bela montanha de longe e sente-se encantado pelas belezas naturais que dela emana, nesse momento ele é Agape e permite-se completamente envolver pelo sentimento de unidade com tudo aquilo à sua frente. Aí percebe-se como rei que não precisa de reinado, pois Eros o mantém vivo e alerta para o feminino e o masculino daquela visão maior que é clara quando ele adentra sem receios a atmosfera que a cerca.


Lídia ouvia música completamente despida sobre a cama, os olhos semi cerrados a faziam sentir como se entrasse na melodia que inundava o seu quarto num tom delicadamente místico. Suas mãos abertas apenas sentiam um pouco a pulsação do sangue a correr pelo seu corpo, oxigenando todas as partes numa tentativa incessante de sempre a manter presente no mundo repleto de sensações onde se permitia estar.


Vick por sua vez banhava-se no perfume de suas violetas, as mãos sujas de terra a faziam tão bem que sentia alegria ao poder olhar a forma engraçada que as pedrinhas tinham quando observadas com atenção de perto.


Por mais que tentasse, Hesse não conseguia dar forma a tudo que vinha ao seu pensamento. Então deixou a pintura no canto da janela para que secasse sem que o sol a visse. Enquanto lava as mãos sente-se tranquilo por mais uma vez a força se manifestar...


Dhrei está a cochilar em baixo da árvore nos fundos de sua casa, lá está deitado agora e alguns pássaros voam baixo conduzidos pela brisa do outono que já se faz presente.


Saboreava geléia de canela com goles de vinho enquanto lia uns versos que havia recebido a tempos atrás. Neles haviam rimas leves, que nem se faziam perceber por quem os escrevia. Eram de um tom de intimidade poética que pouco havia visto em outros versos, assim Tomas sentia-se consigo mesmo enquanto lia e saboreava o leve amor que o vinho fazia ao sorver o gosto de canela ainda presente em sua boca.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Contos interditos - Parte 11

Realidade

Tomas não sabia sobre ela, apenas deixou-se seduzir pela sua forma simples e pequena apesar de ter receios íntimos quanto a isso. A linguagem que compartilhavam era somente deles, nada muito claro quando se tenta entender com os sentidos que se tornam confusos ao se procurar auxílio neles. Assim me sentia muitas vezes quando tentava observar, até perceber que o meu sentir tinha que se tornar rebuscado e incompreendido pela pessoas que não se mesclavam a tal sensação.

Um mistura alucinógena o vinha à cabeça, queria sentir suas energias fluindo numa só como uma grande flor de lótus! E tudo aquilo era como tinha de ser, onde sentia o pulsar constante dos sorrisos que lhe contemplavam com profundos olhares passageiros. De muito esquecera, mas não da grama verde onde descalso deixava que massageassem os pés enquanto a tinha perto do corpo aos olhós da árvore. Queria o toque incompreendido e aveludado que somente poderia vir dela! Não que isso o fizesse perder o valor por todas as outras pessoas, apenas dela havia algo que somente a ela pertencia. Como poderia negar-se a tal valor, se era tão sincera em sua natureza? Agora pude ver algo que encerrava carta e que não pude perceber quando Hesse a envolveu, juntamente com as outras, no manto protetor da sua caixa escura:

"...esse é e será o nosso maior tesouro, vindo de lugares tão altos que somente o que sentimos pode alcansar. Assim perceba que tudo está ligado, como fio fino que nos une desde tempos sem ínicio sempre a nos envolver em seu manto de sensações multicores. Deixe-se consumir pelas chamas de seu próprio ser e purificados sejamos pelo fogo daqueles que compartilham o mesmo sinal."

Sabia que precisava ir ao seu encontro, mesmo ainda que a tarde estivesse clara e a lumiosidade característica o incomodasse um pouco. Saiu do seu canto carregando a carta, que aberta sobre o divã durante a noite ganhara o leve aroma de benjoim da fumaça que cessava.


Hesse decidiu dedicar-se um pouco às suas aquarelas, procurou sair um pouco do clima urbano que o rodeava, era difícil de suportar toda a contemplação que estava imerso no meio de tantas coisas que tentavam roubar-lhe a atenção. Procurou ir aos rochedos não muito distantes onde poderia sujar as mãos nas cores que mais gostava, enquanto deixava tomar formas soltas daquilo que o permeava sem querer. Não tinha em mente o momento preciso de quando tudo aquilo que foi mostrado através dele iria acontecer, respirou fundo e ainda com pingos de tinta seca nas mãos retirou o papel que levara consigo no bolso da camisa de mangas compridas dobradas na altura dos cotovelos. Releu parado um mesmo trecho que prendeu a sua atenção, aquilo deixou-me curioso e acabou por chamar a minha em sua direção:

"Não precisamos do tempo, de nada valeu tudo o que fizemos através de datas e acontecimentos marcados. Então, por que deixaríamos que isso nos levasse aonde não queremos? Contemplaremos nossos rostos e assim reconheceremos o fogo que serpenteia nos conduzindo à sensações muitas vezes incompreendidas, mas que são reais dentro de nossa própria existência. Perceba que o sinal sempre se manifestará, nas pessoas como nós e no lugar onde nos uniremos no solstício próximo."

Após algumas horas de forte observação verificou que a pintura em seu colo ganhara um tom diferente do que imaginava pintar, era a figura de um rapaz cujo rosto não era possível distinguir. O rapaz estava de costas no alto dos rochedos e observava absorto o horizonte, o vento soprava levantando-lhe o casaco que parecia dançar uma música não audível aos ouvidos. Ao seu lado na grama amarelada havia uma pedra de tom luminoso e violeta que brilhava docemente ao sol que se punha frente à figura do rapaz. Dhrei, pensou Hesse por um segundo sem ter dúvidas. Era o sinal novamente que reunia secretamente os merecedores da tal chama, daqueles que haviam sido os mesmos em roupagens novas carregando o fardo de serem inconstantes.


Voltando já de noite em passos que o conduziam aos degraus que iam em direção à porta, tateara a chave sempre escondida debaixo de uma pedra firme e pesada. Ao lado da chave havia um papel húmido e amassado que reluzia um prateado apagado pela luz fraca da entrada. Jogara-se num só golpe na poltrona da sala e lia as palavras que mais pareciam vindas de um pergaminho antigo, talvez escrito por algum artista que sentindo a verdade o manchara de rajados de tinta fraca e colorida. Dhrei ficou calado simplesmente olhando para o vazio, nada consolava o seu pensamento que em ponto algum conseguia fixar. Assim ficou até romper o silêncio com um breve sussurro que não consegui entender, encostou mais ainda as costas na poltrona de forma que seus olhos pudessem brincar com as linhas coloridas formadas pela luz que transpassava o pequeno lustre composto por pedaços de vidro que havia comprado de um mercador indiano.

Eu poderia sentir Tomas muito longe de lá, consegui quase ouvir o balançar da aste de metal a tocar a janela onde ela dormia fazendo um rangir leve e agudo. Era belíssima a imagem de vê-la deitada com os cabelos a tomar a outra parte da cama como se pudesse completa-la por inteiro. O ruído não a acordara de primeiro, mas a fez entrar num novo estado do seu sonho, onde podia ver fogo e o som de galhos de árvores balançando ao vento trazendo uma sensação de mocidade e frescor. À cada toque que a planta da aste fazia na janela, o seu sono se esvaia e a sua consciência acabava por trazê-la de volta aos sabores da realidade. Tomas já estava dando passos em uma quase melancolia quando pode ver o vulto da presença feminina a abrir a janela e olhar atenta para o jardim, sentiu o rosto dela a cruzar a escuridão e ir de encontro aos seus olhos. Ficaram sentados, ela de costas para ele enquanto os seus braços a envolviam por trás. A árvore onde ele estava encostado servia de apoio onde podia repousar a cabeça e inundar-se no perfume que vinha dos cabelos dela. Assim o tempo passou e o clima frio os levou ao quarto dela.

Ao acordar, Vick não sabia onde estava. Sentia-se enebriada pelo sono que ainda teimava em abandonar o seu corpo pequeno. Virava levemente de um lado para o outro de sua cama larga onde sentia-se completamente à vontade para entregar-se por completo à sua preguiça. Porém sentiu algo entre os seus cabelos a arranhar-lhe o rosto, tateou ainda lerda procurando aliviar o incômodo quando segurou o papel de arroz que Tomas a deixara. Os seus cabelos, como ele pensou enquanto deixava o quarto, serviriam de bálsamo por onde os seus desejos sinceros poderiam se banhar.

domingo, 4 de março de 2007

Contos interditos - Parte 10

Veludo

Existiam alguns zumbidos entre o tocar dos copos naquela tarde clara, as pessoas conversavam de forma mansa e era impossível tentar compreender alguma frase por inteiro. A aproximidade entre elas fazia com que falassem baixo e se deixassem entender de uma forma que não são necessárias muitas palavras. Lídia sabia que momentos como esses de alguma forma faziam com que o cotidiano sempre ganhasse um caráter diferente e novo. A força de dentro que sentia sempre querer chamar-lhe a atenção por oras se fazia notar, ainda mais quando conduzia o seu olhar de forma quase que automática para locais ou pessoas que ela não conseguia ao certo distinguir quem eram. E assim quando foi carregar uns copos que estavam largados num canto do local onde se encontrava, percebeu aquilo novamente tentando lhe dizer algo, tentando conduzir a sua atenção para algum ponto que até o momento não sabia qual era. Percebera de súbido algo branco por trás dos copos, algo havia sido deixado ali por alguém que provavelmente esquecera na hora que os deixou. E certamente apenas ela o encontraria, pois os outros colegas estavam em direções cujo trabalho necessitava de uma atenção isolada deles.Tinha um círculo vermelho no centro que o selava, pegou com as mãos e viu que se tratava de uma espécie de carta dobrada de forma não muito igual aquelas que eram enviadas pelos correios, havia uma inscrição no lado oposto ao selo de tom avermelhado que indicava que havia sido deixado exatamente para ela. Como numa intuição forte e passageira resolveu por o papel dentro do bolso e deixar para dar-lhe atenção numa hora mais apropriada.

Hesse sabia que tudo aquilo que escrevera valia também para ele, de alguma forma precisava continuar com aquela sensação que o conduzia a um novo estado do seu ser. Não entedera à primeira vista o que tudo aquilo no papel de arroz queria lhe dizer, mas percebeu que tinha um significado oculto e que somente aqueles cujo "Sinal da Lua" poderia ser notado, eram quem de fato participavam da mesma essência. No dia seguinte notara algo diferente na medida em que ia caminhando em direção ao lugar onde costumava apreciar certos sabores que gostava. Aquilo para ele tornava-se uma descoberta no qual o que se procurava e o próprio buscador eram um só, envolvidos numa percepção de que somente a unidade poderia conduzir. Pedira algo gelado para beber e procurou ficar resguardado das conversas sem nexo que pairavam pelo ar vindas de um grupo de pessoas que conversavam sem assunto definido. Lídia não o percebera, estava tão atarefada sozinha que não desviava o seu olhar com muita frequência, apenas focava naquilo que estava imediatamente à sua frente. Então tirou um dos papéis selados do bolso e deixou justamente numa posição que era quase que inevitável que não se barrasse com ele, assim fez enquanto ela havia entrado para a parte dos fundos do lugar e logo após ele saiu em direção à porta de vidros largos que o levava ao lado de fora.

O que seria que fluia por ela para que ele a identificasse com o sinal e a levasse consigo aonde havia sido indicado? Percebia que existia algo no momento em que escrevia as palavras, até então sem sentido, que não se deixara perceber. Percebia o tom dual daquilo tudo, sempre aprendera sobre a dualidade das coisas assim como as pessoas procuravam expressar para ele e isso o arrasava. Deixava-o descontente com a dificuldade de se ter tantos sentidos duplos para lidar, e o pior de tudo era que sempre atribuíam qualidades boas e ruins a tudo! Por que deveriam todas as coisas serem boas ou ruins, todas as sensações delas devem ser sensações e isso basta. Não há um porquê necessário de se buscar simetria em todos os lados, nada é perfeitamente igual em todas as suas partes. A unidade o fazia pensar naquilo tudo e o deixava um pouco menos opaco. Sentia que em tudo havia uma deformidade natural, uma lado não reto e que possuia uma beleza realmente verdadeira. A lua encarava essa não simetria natural, suas formas eram completamente únicas e possuia a dualidade como uma única essência. O seu hermafroditismo de energias era o seu sinal, pois trazia consigo a essência do sol, do que resplandecia as suas tonalidades como numa orgia de cores vindas do astro rei. E apesar de todos os seus raios misturados como um só, era incapaz de perder aqueles que eram os encantos da sua própria feminilidade.

Abraçara aquela sensação e deixou-se consumir, sabia que a seriedade de si mesmo estava pronta para ser aniquilada num só golpe vindo da própria essência que lhe pertencia. Sossegado em um momento silencioso, sabia que coisas nesse instante estavam a acontecer, o fluído mágico que conduziriam a todos os que possuiam o sinal, estava seguindo um curso forte e natural. Que assim seguisse! Pensou Hesse num estalo de insconsciência já trazida pela sensação que tal situação lhe propiciava.

Tomas adentrava o apartamento, ainda com forte cherio de incenso de bejoim a pairar sob o ar, e desabou no divã verde-musgo respirando fundo. Sentiu uma falta de ar leve e marcante, sentia sempre isso quando não procurava se levar tão a sério. Coisas não muito fáceis de se lidar, eram sensações tão fortes nele que sabia que criavam uma forma adocicada ao toque de certas pessoas. Elas quando adentravam o seu mundo recluso deixavam-se pertencer a ele e adoravam tal figura que podiam encontrar, quando refletidos no espelho que vinha de tudo o que Tomas era as imagens de suas almas verdadeiras saltavam-lhes sobre a mente. Maravilhas como essas eram necessárias para que tudo sempre se renovasse e a figura de Shiva o deixava clara tal necessidade de não manter-se estagnado. Que vontade de enebriar-se novamente no aroma de tais cabelos, isso o afagava como força voraz. Assim quase que deixando uma lágrima escorrer pelo canto do olho, como aquelas que simplesmente escorrem pelo fato de se ficar deitado sobre um lado do corpo por muito tempo, vislumbrou algo que estava pelo chão próximo a porta. Como num salto pegou o papel branco e voltou novamente a deitar no cálido divã, adimirando tal imagem alva que amanava de suas mãos.

Leu como num suspiro tudo aquilo que era destinado a ele, e alisavava o selo vermelho enquanto pensava no que o alegrava em tom intimamente admirador. Algo havia percebido nele a sua real natureza e isso o acariciava, deixando-se relaxar mais ainda no divã enquanto dizia uns versos sem pensar vindos de seu pensamento:

"Eu ainda fogo-sossego,
Caminhante sem treino
A trilhar o existir.

Não, não me olhes de cá.
Apenas quero que vá,
Ao girassol és maior.

Abrindo as portas que fechei,
Sem saber eu deixei."

Vinha a presença de longe como se tivesse perto, nesse momento desejou que tudo aquilo se realisasse. Queria beijar-lhe a nuca e deixa-se conduzir por sensação de mocidade viva que pulsava pelos braços e pescoço dela. Assim sentiu a melancolia dos poetas procurando deitar-se no aroma que vinha do jardim dos fundos, do divã que o acolhia como em abraço desconhecido.

sexta-feira, 2 de março de 2007

Contos interditos - Parte 9

Manifestar

Hesse adormecera fitando a aquarela que havia pintado e que pendurara na parede oposta aos pés da sua cama, a pôs lá para que justamente quando acordasse fosse a primeira coisa que seus olhos vissem. A figura era de um pássaro imponente, com plumas vermelho alaranjadas e que sob o alto da cabeça trazia um turbante branco feito de algum tecido de grande leveza. A ave olhava aos céus como se observasse algo que estava num estado superior ao seu, ou como se ele fosse a própria divindade a servir de canal para que suas bençãos fluíssem para aquelas pessoas cuja direção o seu olhar seguia. No escuro não podia ver com clareza os tons da pintura, mas sabia que era a coisa mais bela que de dentro de si poderia ter tomado forma física. Sabendo que isso era uma façanha um tanto delicada, pois segundo ele a beleza estava num nível de evolução superior ao toque. Adormecera com melodias na cabeça, mas não sabia de onde vinham...

Por várias horas eu poderia sentir o seu corpo levemente frio abraçado a um travesseiro enquanto profundamente dormia, ele não mais ali estava. Na grande maioria das vezes o repouso do seu corpo estava associado a poder de viajar, morrer todas as noites e voltar à existência física quando o sol já havia se manifestado quente e presente. A penumbra que o envolvia era de um silêncio que chegava a impressionar, tudo parecia eternamente constante naquelas horas em que vivia intensamente o seu sono, solitário e particular como tanto gostava. Poderia domir com outras pessoas, mas a idéia de compartilhar o seu sono era algo que ele ainda não deixara que invadisse por inteiro a sua vida. Acredito que nesses momentos ele ficava ali atento ao lado do corpo na noite que passava, simplesmente observando o seu respirar profundo e quem sabe deixando-se envolver pelas melodias que ouvia enquanto a morte noturna começava a lhe tornar dormente os sentidos do corpo.

Ainda podia-se ouvir as gotas da chuva escorrendo pela parede do lado de fora do seu quarto, não entendo como o musgo e sua tonalidade verde-terra pareciam fazer ecoar aquele som que a natureza tocava somente àqueles que tinham os ouvidos apurados. Os olhos dele abriram enquanto o seu corpo dava um leve movimento de preguiça e descanso merecido. A visão ainda embassada não impediu que visse a divindade figurada no pássaro de aquarela, fazendo-o cochilar por mais alguns instantes de uma forma breve e de profundidade maior que a noite inteira. Todos os tempos virão, serão sempre lembrados como se os vivesse a cada instante e serão lembrados em seguida de forma espôntanea e natural. Hesse despertara por completo, mesmo sendo difícil para ele trazer de volta ao corpo tudo que sua mente sentira nesses minutos que valiam como séculos de revelação e quietude.

Fora apresentado à magia do seu teatro mágico, tudo aquilo por um momento impossível de ser descrito foi mostrado a ele de forma tão clara que sabia que se não pusesse em prática o quanto antes iria esquece-lo de vez, e ele não iria poder tomar forma. Molhou o rosto no banheiro próximo ao quarto e preferiu não ver-se no espelho, aquele que ainda habitava nele não poderia ser visto com os olhos. E ele apartir daí passou a encarar isso com total encanto e respeito, como uma promessa que tivesse guardado entre as mãos após ter sido feita em algum ritual interior. Enxugou o rosto voltando ao quarto e sentou no seu tapete cor de vinho que se estendia logo abaixo da imagem do deus de turbante. Lá próximo havia uma caixa de madeira de aparência misteriosa, uma gravura feita de prata de um serpente que engolia parte da própria calda relusia na claridade do quarto. Hesse ficou um pouco olhando para ela como se tentasse retomar todas as sensações que sentira em seu breve sono, ele sabia que elas já o estavam deixando naquele momento e precisava tentar preserva-las de alguma maneira.

Abriu uma caixa e retirou uns papéis em branco, tinham a textura um pouco rugosa porém eram de grande delicadeza. Olhando bem pra eles consigo lembrar de ter visto um desses sob a forma de marcador com uns desenhos já envelhecidos em um livro que Hesse deixara aberto em cima da cama enquanto deixava o quarto atrasado para um compromisso. Alisou um deles e começou a escrever, com a caneta de cor preta que também tirara da caixa, alguns dizeres:

"Você mostrou-se merecer adentrar o que de maravilhoso já existia. Aquilo que já existia em você mesmo e que somente agora a chave lhe é dada para que vivencie espontaneamente aquilo que vem de sua própria alma. Tudo torna-se-á visível, assim seremos um em espírito e consciência, isso é tudo."

Tinha algo como um endereço em baixo de tais dizeres, mas eu não pude notar com clareza. Mais uma coisa pude ler antes que Hesse dobrasse o papel e o fechasse com um selo vermelho de forma circular onde havia a mesma gravura que pude observar na caixa antes de a abrir:

"... a você algo novo brilhará. Alguém também vivenviará em unissidade o que agora compartilhamos, esta pessoa você saberá quem é pois lhe será mostrada pelo Sinal da Lua. Traga-a consigo aonde falei, que assim seja."

Rapidamente fizera três cópias dos mesmos inscritos, repetindo o processo de selar o papel de folha de arroz, guardando-as dentro da mesma caixa. Hesse sabia que nesse instante era utilizado como canal para que algo pudesse se expressar, na verdade ele sabia que aquilo tinha que fluir e que bloquear tal sensação seria negar-lhe a existência.

quinta-feira, 1 de março de 2007

Contos interditos - Parte 8

Sintonia

Acordara cedo contra a vontade de um entorpecer profundo depois da noite passada de melancolia em sua cama ainda feita. Sabia das coisas que sentia e ela procurava encarar com naturalidade a sua timidez que muitas vezes acabava por chamar a atenção sem querer. Poucas pessoas realmente se importavam com ela ao ponto de dar-lhe uma atenção que satisfizesse a vontade de liberar-se um pouco sem certos receios. Costumava ler certos livros não muito fáceis de se achar, lembro de vê-la em algumas tardes escondida por trás das estantes do fundo da livraria onde esses livros poderiam ser abertos e lidos sem que pudesse ser observada. Sabia da existência de certas forças além da propria consciência e era nelas que procurava se fixar quando todo o resto se envolvia num tom opaco e sem vida típico das cidades, que perderam a essência campestre que ela tanto apreciava quando ia em direção às montanhas em suas viagens de solidão. O seu quarto ficava no alto e ela podia observar o jardim que no fundo da sua casa ainda lhe preservava um pouco do espírito que alcançava em certos estados de elevação. Seus cabelos longos eram de incrível beleza, principalmente quando podiam ser vistos sem que ela percebesse, pois sempre evitava se fazer notar àqueles que não tinha um contato sequer.

Aquele dia estava diferente e ela gostaria de poder experimentar algo novo, poder entregar-se a certos sabores que considerava bastante importantes para se lembrar que ainda parecia como as outras pessoas. Foi então em direção à livraria para pegar um livro que encomendara com o livreiro e que falava sobre certas influências lunares que ela gostaria de entender melhor. Na verdade isso é muito mais profundo, prefiro esperar até que possa ver como Vick deixará essas influências se manifestarem nela quando lhe achar conveniente.

Sentira um forte cheiro de chá após dar os primeiros passos opostos aos olhos do livreiro, resolvera parar um pouco e folhear o livro enquanto sentia o vapor da bebida a envolver-lhe os cabelos. Bebia vagarosamente o seu chá de canela com flor de laranja e se distraía com o livro aparentemente antigo, quando percebeu no canto do seu olho a figura de alguém que a observava num certo ar distraído. Parecia que a moça que lhe servira estava pensando alto e resolvera descansar os olhos em direção à sua pessoa sem a maior preocupação. Por um instante as duas se fitaram e sorriram de uma forma meio encabulada, percebi que haviam notado uma na outra aquela essência que ambas já haviam sentido em momentos de solidão. Coisas que confesso, não são muito simples de descrever, ainda mais quando se sabe que essas sensações parecem vir de algum plano espiritual ainda pouco notado entre a maioria das mulheres.

Ao chegar em casa preferiu não subir em direção ao quarto, a sensação de descoberta estava forte demais para que ela se limitasse ao espaço tão pequeno comparando-se com aquele que tinha quando sentava no jardim dos fundos. Ainda era marcante a presença dele no jardim, tanto que sentiu-se incomodada quando chegou mais perto e ainda podia notar o aroma etério de tal pessoa. Foram mágicos aqueles tempos onde pode sentir realmente a força divina que emanava de suas mãos ao alisar-lhe os cabelos e inspirar o ar que ela expirava. Os deuses todos pareciam sempre apreciar tal momento, pois tudo se excluía naqueles instantes, exceto a árvore que atrás parecia os envolver por inteiro de uma forma reservada e secreta.

Lídia saiu mais cedo, aquele dia ela precisava deixar que outras coisas se manifestassem além da sua simples rotina diária. Sentia uma força feminina muito sutil a correr pelo seu corpo, os seus cabelos um pouco acima dos ombros permitiam que sentisse a briza fresca que soprava naquele início fim de tarde e que ela adorava com satisfação. Resolvera caminhar, naquele local tudo era tão perto que ela sentia com um único passo cruzar todo o caminho e toda a vida que fluia por aquele dia que ela só acordara agora. Era como se todo o resto do dia tivesse sido como estórias contadas a ela na cama antes de dormir, sente-se elas todas como realidade, mas só o sono inocente trará o que de fato importa. Aí sentiu que a chama apagada daquelas horas apenas acendia o que ainda realmente tinha para ficar, o que ainda fazia sentido, por mais que esse não fosse tão comum à primeira vista.

Lembrara-se da imagem de Vick, ainda desconhecida, com um livro negro nas mãos. Que sorriso profundo vinha dela! Sentia-se estranha, meio que magnetizada por alguma força que direcionava, sem que percebesse, o seu olhar de encontro à algum ponto de interesse da força. Bastando que para isso simplesmente se deixasse levar a um estado de lerdeza mental, típica quando lavava as mãos e podia sentir aquilo que limpava-lhe a alma. Sabia que existia uma sintonia fina, mas extremamente importante entre as duas na forma como a tal força as sintonizou. Eu podia sentir nos olhos dela a mesma sintonia que a fizera trocar palavras breves, mas de verdadeiro significado, quando servia aquela bebida gelada à Hesse. Já o notara outras vezes, mas somente da última percebera a forma de sacerdote meigo com que olhava para ela e respondia-lhe amorosamente os estímulos. Sabia que ele era uma mistura de diversas nuances de seu ser, desde uma amizade terna à um fogo inabalável que lembrava sentir quando dançava ao redor de uma fogueira nos seus tempos de menina. Esses tempos não eram longes, pois a fogueira ainda acesa sempre conduzia os seus passos a momentos de torpor e maravilhas. O divã verde-musgo nesse momento tornava-se rubro e sentia-se saudada pela figura que atentamente a observara do alto da parede.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Contos interditos - Parte 7

Movimento

O teatro mágico pulsava na cabeça de Hesse como uma nota aguda e repetida, ele sentiu-se comover com tal pensamento tão natural, porém tão posto de lado por aqueles que sentem a arte nas mãos. Gostaria de poder compartilhar isso com todos que ele sentia que havia no interior a mesma chama que agora iluminava o lugar onde estava. Conduziria tal sensação à plenitude de que esperava, se a manifestasse completamente de forma solta e verdadeira com aqueles que ele realmente sabia que a cultivariam?

Tal reino poderia ser criado e o mais importante, cultivado como bela flor! Ele sabia que isso implicava em mudanças, realmente mudanças sinceras que transformariam o seu ser por completo. Deixariam solto de coisas que ele cultivara desde a infância e que tinham a sua importância depois que crescera e vivenciara um mundo de aparências não muito bem definidas como os daquela época. Necessitava de desapegos diários, desde os mais simples gestos aos mais puerís de todos os gostos que sentia, isso o atemorizava o íntimo. Certamente que compreendo tal sensação, ela não muitas vezes pode ser arrancada, mas transmutada numa coisa superior que deve sempre ser preservada a sua natureza não estática. Não era simples para ele sentir o que uma vez foi-lhe dito, a necessária ruptura de tudo o que a ele foi lhe entregue e que o mantia num estado de cativeiro morno e dócil. As noites de maravilha que ele sabe que não mais eram as mesmas, haviam ficado dentro de si, e as que hoje percebia ganharam um caráter de cor diferente. Ele poderia transmutar, claro! Dominá-las dentro da sua própria consciência, para que tivesse sol quando quisesse ou lua quando assim desejasse na sua verdadeira vontade. Tudo não era simples, era necessário por em movimento forças que não sabia muito bem se sabia como controlar...

Enquanto isso, num outro ponto Dhrei deitado em sua cama observa o teto e sente-se sonolento. Naquele momento ele poderia na mais pura e clara vontade deixar-se levar, como um barco vazio por um rio que desaguaria do alto de um grande rochedo. A queda não o punharia em risco, estava tudo dentro dele e a água lhe faria bem quando sentisse as gotas a flutuar molhando-lhe a testa enquanto caia. Ainda podia sentir tudo, desde o gosto como a visão. Aquela que lhe servira a bebida outro dia, formosamente bela e inconsciênte de sua presença, sabia ele ser capaz de conhecer melhor o que ela sentia em momentos longe do tinir dos copos ou dos pratos do lugar onde trabalhava. Decidiu, assim que a tarde desse o seu ultimo sinal ir beber algo e quem sabe permitir-se vê-la. Dormiu e não posso mais sentir o que emanava dele, pelo menos por agora.


Tomas entregara-se por completo à meditação como há muito não fazia, e isso criava-lhe sempre uma sensação de peregrinação em direção a algum ponto oculto dentro de si. Era como se pudesse sentir a dor e o cansaço de tal afastamento, de ter deixado que intervalos tão grandes limitassem momentos como aquele onde poderia entregar-se em luz. Os sábios antigos diziam que o controle do fluxo mental era importante, assim fazendo era possível dissolver os véus que limitavam a consciência de sua real natureza divina. Isso era revelador, mas Tomas não conseguia interromper os pensamentos que o assaltavam a mente. A visão do divã naquele dia, enquanto estava na janela observando as luzes que se acendiam do lado de fora e olhava sempre para trás, ali estava a pedir-lhe atenção. Como de súbito sentia o aroma de Vick e os seus cabelos, sentia como se pudesse preservar dentro dele mesmo tal aroma. Como os mestres vidreiros que tinham o toque de mão perfeito para fazer o melhor frasco capaz de conter toda a essência de um perfume sem deixar que uma ventania levasse-lhe uma gota!

Lá ficou sentado, como em estado hipnótico observando o que se passava internamente sem que ele pudesse ter o menor controle. Mesmo longe poderia ser sentido por ela, que poupava-lhe certos detalhes de si mesma e o conduzia a uma certa vida que tomava forma toda vez que Tomas respirava junto com ela. Parece que o apartamente se encheu de neblina, quase não consigo observar o que agora se passa. Talvez a vibração que lá existe esteja envolvendo tudo num sentido íntimo e particular que prefiro deixar como está, apenas seguindo a contemplação da beleza que dela emana.


As lembranças dos sonhos que tivera ainda eram presentes, procurava vivenciar o que os seus sentidos lhe diziam, mas o seu interior apenas pedia que pudesse ficar longe daquilo tudo. Era inevitável naquele momento deixar de se entregar àquela sensação, mesmo tendo muito o que fazer ali onde trabalhava. Subia um vapor perto de onde estava, tantas misturas de cheiros que exalavam das pessoas e o que elas queriam para beber ou comer, a fazia quase que não sentir fome. Era como se tudo aquilo perdesse a graça para ela, os sentido já estavam dormentes e ela só queria algo em que pudesse encostar o corpo. A presença do divã verde-musgo era forte, como poderia ter adormecido nele sem simplesmente dizera o que queria dele? Ela nem mesmo sabia, queria sentir-se nova e quando segurou a mão de Tomas, sem que nada pudesse acontecer desabou num sono profundo próxima dele. Ao acordar ele não estava mais, havia saído deixando uma pequena refeição na mesa circular. Ela provara com a sensação de que o amor se manifestava nas formas mais inusitadas e perigosas a cada pedaço das coisas preparadas por ele que ela deixava o seu corpo absorver.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Contos interditos - Parte 6

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A gravura imponente de Shiva pendurada na parede oposta ao divã criava um clima místico e eterno no ambiente, o olhar com que o deus hindu e sua forma regeneradora observa a tudo lembra-me um tempo antigo repleto de mistérios. Tudo que era feito e sentido aos seus olhos era encarado como uma prece, feita das mais diversas formas e sem se fixar em padrões estabelecidos. A energia já fixada naquele rosto bem desenhado trazia grandes lembranças que nunca seriam reveladas, pois o tom mudo e silencioso do semblante de Shiva não era do tipo de expor o que observava. Afinal, ele era responsável pelas mudanças do universo, por dar um caráter novo a tudo que havia sido criado, assim como destruí-lo por completo para que tudo possa se manter sempre em movimento.

Mas existia algo que a gravura da divindade nunca havia presenciado dentre aqueles anos de visão e mudanças na atmosfera daquela sala. Já vira muita coisa em quietude, amores como uma meditação profunda e repleta de compaixão. A compaixão que sabia que significava a vivência dos pesares nos sorrisos que Tomas permitia-se trazer consigo, vindos de diversas nuances e que ele lidava com certa maestria. Havia também uma pequena mesinha esquecida, onde ele sempre repousava alguns poucos livros, que cheiravam a incenso muitas vezes acesos enquanto estava presente, e certos instrumentos que só depois de algum tempo conseguir entender o real siginificado oculto. Os incensos tinham um caráter especial no universo no qual tudo aquilo conspirava, servia-lhe como meio de realçar os aromas que muitas vezes vinham presos nele mesmo e que o rebatavam o pensamento às alturas. Então a fumaça que vagava pelo lugar servia-lhe de caminho ao seu sono, leve e repleto de sensações não muito fáceis de descrever.

Havia marcado para o fim da tarde o encontro, e certamente que um certo atraso por parte de quem chegara seria tolerável, mas Tomas realmente ficava impaciente ao ver os olhares hindus sobre ele enquanto algo novo estava por tomar forma. A porta levemente levantou um ruído que ele sabia de quem era, Hesse. Passou a mão pelos cabelos e caminhou em direção à porta que o aguardava, percebeu que alguma coisa nova além do antigo estranho também o aguardava do lado de fora do apartamento. Uma leve mecha caía à testa do rapaz ao lado de Hesse, que foi imediatamente cordial ao apertar-lhe a mão após serem apresentados. Era claro que Dhrei estava realmente admirando cada vez mais a companhia de Hesse para deixar-se envolver em tais ambientes repletos de coisas novas e não muito simples de enteder ao primeiro piscar de olhos.

Entraram, o aroma do incenso já apagado ainda presente no ambiente elevou ainda mais o tom da atmosfera para aquilo que Hesse sabia que realmente lhe era familiar. O deus os olhavam e como de costume apenas observava mais um ciclo de novos acontecimentos. Teria ele algum tipo de influência nesse novo caminhar das coisas? Parecia um guardião, algo tranquilo de se observar porém forte e impávido como somente alguns orientais que conheci.

Sentaram os três numa pequena mesa de forma circular que ficava mais próxima da visão da janela de vidros longos, que apesar da chuva deixava clarear algumas luzes acesas do lado de fora. Conversaram sobre diversas coisas, principalmente sobre aquelas que despertava o interesse de Hesse e Tomas em uníssono, as visões que tinham e que muitas vezes o maltratavam por eles ainda não terem o controle necessário para viver certos tipos de sensações da forma como queriam. Como por um instante Hesse lembrou-se com uma força enebriante da figura de Lídia, e das vezes que a força aparentemente foi controlada quando ele adentrara o seu universo particular de sons que somente os deuses esquecidos ainda guardavam a melodia. Ainda poderia ouvi-la?

Dhrei contou-lhes o momento que sentiu a primeira vontade de simplesmente deixar-se queimar. Não tinha sido a muito tempo que as formas começaram, sendo apartir daí que elas se tornaram calmamente frenqüentes. Drhei tinha uma grande diferença dos dois que ouviam atentamente o que ele tinha a dizer, Dhrei era unitário. Tudo o que fazia era focado unicamente em uma faceta daquilo que no momento lhe interessava. E quando tentava atentar-se a mais de uma via, ficava completamente inerte e faltavam-lhe os sentidos. Era díficil para ele lidar com tudo aquilo em uma única percepção. Ajeitou a mecha levemente aloirada que caíra-lhe sob a testa e bebeu mais um gole de vinho, enquanto tentava retomar a atenção na conversa.

Tomas olhou para Hesse e mencionou o tempo em que ouvira falar de Jung e suas estórias. A psicologia que ele gostava era desprovida de qualquer detalhe formal, isso aprendera consigo mesmo após terem sido apresentadas, por uma antiga amiga que gostava de suas obras, os arquétipos que tanto observava nas pessoas. Dhrei já ouvira falar muito de métodos e técnicas sobre o entendimento que ainda se tentava aprimorar para que a visão do homem para consigo mesmo fosse mais real, mas sabia no seu íntimo que somente a beleza artística do toque e dos sentidos mais simples levariam a tal estado de elevação. Hesse apenas observava e brincava com os seus próprios dedos como num gesto de total despreendimento e inoscência para com o que os dois rapazes exalavam.

Compartilharam daquela sensação durante todo o fim da tarde, a chegada da noite parecia sonolenta por natureza. Como se quisesse preservar os outros seres das sensações que saiam pelas janelas daquele apartamento. Apenas deixando com que colhessem algum fruto maduro num futuro próximo, mas essa não era a hora. Precisavam de mais tempo para sentirem verdadeiramente o que brotava espontaneamente deles, e assim olhando para Shiva pensei que a eles talvez o universo pudesse conceder tal dádiva...