Victor Requião

Assine

Sobre

Twitter @victorrequiao

sexta-feira, 2 de março de 2007

Contos interditos - Parte 9

Manifestar

Hesse adormecera fitando a aquarela que havia pintado e que pendurara na parede oposta aos pés da sua cama, a pôs lá para que justamente quando acordasse fosse a primeira coisa que seus olhos vissem. A figura era de um pássaro imponente, com plumas vermelho alaranjadas e que sob o alto da cabeça trazia um turbante branco feito de algum tecido de grande leveza. A ave olhava aos céus como se observasse algo que estava num estado superior ao seu, ou como se ele fosse a própria divindade a servir de canal para que suas bençãos fluíssem para aquelas pessoas cuja direção o seu olhar seguia. No escuro não podia ver com clareza os tons da pintura, mas sabia que era a coisa mais bela que de dentro de si poderia ter tomado forma física. Sabendo que isso era uma façanha um tanto delicada, pois segundo ele a beleza estava num nível de evolução superior ao toque. Adormecera com melodias na cabeça, mas não sabia de onde vinham...

Por várias horas eu poderia sentir o seu corpo levemente frio abraçado a um travesseiro enquanto profundamente dormia, ele não mais ali estava. Na grande maioria das vezes o repouso do seu corpo estava associado a poder de viajar, morrer todas as noites e voltar à existência física quando o sol já havia se manifestado quente e presente. A penumbra que o envolvia era de um silêncio que chegava a impressionar, tudo parecia eternamente constante naquelas horas em que vivia intensamente o seu sono, solitário e particular como tanto gostava. Poderia domir com outras pessoas, mas a idéia de compartilhar o seu sono era algo que ele ainda não deixara que invadisse por inteiro a sua vida. Acredito que nesses momentos ele ficava ali atento ao lado do corpo na noite que passava, simplesmente observando o seu respirar profundo e quem sabe deixando-se envolver pelas melodias que ouvia enquanto a morte noturna começava a lhe tornar dormente os sentidos do corpo.

Ainda podia-se ouvir as gotas da chuva escorrendo pela parede do lado de fora do seu quarto, não entendo como o musgo e sua tonalidade verde-terra pareciam fazer ecoar aquele som que a natureza tocava somente àqueles que tinham os ouvidos apurados. Os olhos dele abriram enquanto o seu corpo dava um leve movimento de preguiça e descanso merecido. A visão ainda embassada não impediu que visse a divindade figurada no pássaro de aquarela, fazendo-o cochilar por mais alguns instantes de uma forma breve e de profundidade maior que a noite inteira. Todos os tempos virão, serão sempre lembrados como se os vivesse a cada instante e serão lembrados em seguida de forma espôntanea e natural. Hesse despertara por completo, mesmo sendo difícil para ele trazer de volta ao corpo tudo que sua mente sentira nesses minutos que valiam como séculos de revelação e quietude.

Fora apresentado à magia do seu teatro mágico, tudo aquilo por um momento impossível de ser descrito foi mostrado a ele de forma tão clara que sabia que se não pusesse em prática o quanto antes iria esquece-lo de vez, e ele não iria poder tomar forma. Molhou o rosto no banheiro próximo ao quarto e preferiu não ver-se no espelho, aquele que ainda habitava nele não poderia ser visto com os olhos. E ele apartir daí passou a encarar isso com total encanto e respeito, como uma promessa que tivesse guardado entre as mãos após ter sido feita em algum ritual interior. Enxugou o rosto voltando ao quarto e sentou no seu tapete cor de vinho que se estendia logo abaixo da imagem do deus de turbante. Lá próximo havia uma caixa de madeira de aparência misteriosa, uma gravura feita de prata de um serpente que engolia parte da própria calda relusia na claridade do quarto. Hesse ficou um pouco olhando para ela como se tentasse retomar todas as sensações que sentira em seu breve sono, ele sabia que elas já o estavam deixando naquele momento e precisava tentar preserva-las de alguma maneira.

Abriu uma caixa e retirou uns papéis em branco, tinham a textura um pouco rugosa porém eram de grande delicadeza. Olhando bem pra eles consigo lembrar de ter visto um desses sob a forma de marcador com uns desenhos já envelhecidos em um livro que Hesse deixara aberto em cima da cama enquanto deixava o quarto atrasado para um compromisso. Alisou um deles e começou a escrever, com a caneta de cor preta que também tirara da caixa, alguns dizeres:

"Você mostrou-se merecer adentrar o que de maravilhoso já existia. Aquilo que já existia em você mesmo e que somente agora a chave lhe é dada para que vivencie espontaneamente aquilo que vem de sua própria alma. Tudo torna-se-á visível, assim seremos um em espírito e consciência, isso é tudo."

Tinha algo como um endereço em baixo de tais dizeres, mas eu não pude notar com clareza. Mais uma coisa pude ler antes que Hesse dobrasse o papel e o fechasse com um selo vermelho de forma circular onde havia a mesma gravura que pude observar na caixa antes de a abrir:

"... a você algo novo brilhará. Alguém também vivenviará em unissidade o que agora compartilhamos, esta pessoa você saberá quem é pois lhe será mostrada pelo Sinal da Lua. Traga-a consigo aonde falei, que assim seja."

Rapidamente fizera três cópias dos mesmos inscritos, repetindo o processo de selar o papel de folha de arroz, guardando-as dentro da mesma caixa. Hesse sabia que nesse instante era utilizado como canal para que algo pudesse se expressar, na verdade ele sabia que aquilo tinha que fluir e que bloquear tal sensação seria negar-lhe a existência.

Postar um comentário